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A lanterna, extinta, balançava ainda contra o mastro onde estava pendurada. Um tambor ressoava. Remos rangiam pesadamente, regularmente. A madeira do navio estalava e gemia como uma centena de pequenas vozes. Um homem lá em cima, à proa, gritou qualquer coisa para os marinheiros por detrás dele. Os homens acorrentados com Arren no porão da popa mantinham-se em silêncio. Cada um tinha um anel de ferro em volta da cintura e algemas nos pulsos, e ambas essas prisões estavam ligadas por uma corrente pesada e curta às do homem seguinte. O cinto de ferro estava também acorrentado a uma pulseira no cavername do navio, de modo que o prisioneiro podia sentar-se ou acocorar-se, mas não pôr-se de pé. Estavam demasiado apertados para se poderem deitar, amontoados no pequeno porão da carga. Arren encontrava-se junto à escotilha da frente. Se levantasse muito a cabeça, os olhos ficar-lhe-iam ao nível do convés, entre porão e amurada, com uns dois pés de largura.

Da noite anterior, pouco recordava para além da perseguição e do beco sem saída. Lutara, fora deitado abaixo com uma pancada e tinham-lhe atado os braços, assim o levando para qualquer lado. Ouvira falar um homem que tinha uma voz estranha, murmurante. Houvera um lugar como uma forja, o fogo a lançar labaredas vermelhas… Não conseguia lembrar-se bem. Mas sabia que estava num navio de escravos e que fora aprisionado para ser vendido.

Aquilo não tinha grande significado para ele. A sede que sentia era demasiada. Doía-lhe o corpo, a cabeça. Quando o Sol nasceu, a luz foi como lanças de dor nos seus olhos.

Mais tarde, a meio da manhã, deram um quarto de pão a cada um e um longo sorvo de água de uma botija de couro, que um homem de rosto feroz e rude lhes chegou aos lábios. A apertar-lhe o pescoço, trazia uma tira larga de couro, como uma coleira de cão, com tachas de ouro, e quando Arren o ouviu falar reconheceu a voz fraca, estranha, sibilante.

A bebida e o alimento aliviaram-lhe momentaneamente os males do corpo e aclararam-lhe o cérebro. Olhou pela primeira vez os rostos dos seus companheiros de escravidão, três na sua fila e quatro logo atrás. Alguns estavam sentados, com as cabeças apoiadas nos joelhos erguidos. Um tombara para o lado, doente ou drogado. O que estava junto de Arren era um indivíduo de uns vinte anos, de cara larga e achatada. Arren perguntou-lhe:

— Para onde é que nos levam?

O outro olhou para ele — entre as caras de ambos não havia nem um pé de distância — e arreganhou os dentes, encolhendo os ombros, e Arren julgou que ele quisesse dizer que não sabia. Mas depois ele contorceu os braços algemados como se pretendesse fazer algum gesto e abriu muito a boca para mostrar, no sítio onde a língua deveria ter estado, apenas um coto enegrecido.

— Deve ser Xaul — disse um por detrás de Arren. E logo outro:

— Ou o Mercado em Amrane.

E então o homem com a coleira, que parecia estar em todo o lado do navio ao mesmo tempo, debruçou-se sobre o porão, sibilando:

— Calem-se se não querem ir todos servir de isco para os tubarões.

Imediatamente, todos se calaram. Arren pôs-se a tentar imaginar esses lugares, Xaul, o Mercado de Amrane. Negociavam em escravos, aí. Expunham-nos em frente dos compradores, sem dúvida, como os bois ou os carneiros que se vendiam na Praça do Mercado, em Berila. E também iria estar ali, com as suas correntes. Alguém o compraria e o levaria para casa, e depois dar-lhe-iam uma ordem. E ele recusar-se-ia a obedecer. Ou obedeceria para depois tentar fugir. E, de uma maneira ou de outra, acabaria por ser morto. Não é que a sua alma se rebelasse perante a idéia da escravidão, pois estava demasiado enjoado e aturdido para isso. Era simplesmente porque sabia que não seria capaz de o suportar. Que, daí a uma semana ou duas, morreria ou seria morto. E embora visse e aceitasse isso como um fato, atemorizava-o, de modo que parou de pensar no que se seguiria. Baixou os olhos para as tábuas negras e imundas do porão, entre os pés, e sentiu o calor do sol nos seus ombros nus e a sede a secar-lhe a boca, a estreitar-lhe de novo a garganta.

O Sol pôs-se. Veio a noite, clara e fria. Surgiram nítidas as estrelas. O tambor ressoava como um bater lento de coração, marcando as remadas pois não corria uma aragem. E agora o frio tornara-se a desgraça maior. As costas de Arren conseguiam um pouco de calor das pernas dobradas do homem atrás dele e, no seu flanco esquerdo, do mudo ao seu lado, que permanecia sentado e Corcovado, resmungando um ritmo feito de grunhidos e sempre na mesma nota. Os remadores foram rendidos. O tambor voltou a soar. Arren ansiara pela escuridão, mas agora não conseguia dormir. Tinha os ossos doridos e não podia mudar de posição. Estava para ali sentado, dolorido, trêmulo, de boca seca, erguendo os olhos para as estrelas que se moviam no céu com um sacão a cada impulso dos remadores, deslizavam de volta aos seus lugares, ficavam paradas, davam novo sacão, deslizavam, paravam… O homem da coleira e um outro estavam entre o porão da popa e o mastro. A pequena lanterna, balouçando no mastro, brilhava um pouco entre eles e destacava-lhes as cabeças e os ombros em silhueta.

— Nevoeiro, ó meu bexiga de porco — soou a voz fraca e odiosa do homem da coleira. — E o que é que o nevoeiro vem fazer nos Estreitos do Sul, nesta altura do ano? Sorte maldita!

O tambor reboava. As estrelas saltavam, deslizavam, paravam. Ao lado de Arren, o homem sem língua teve um estremecimento de todo o corpo e, levantando a cabeça, lançou um grito de pesadelo, um ruído terrível, informe.

— Cala-te, aí! — rugiu o segundo homem junto do mastro. O mudo voltou a estremecer e calou-se, mastigando em seco.

Sub-repticiamente, as estrelas deslizaram para o nada.

O mastro tremulou e desapareceu. Dir-se-ia que uma coberta cinzenta e fria caíra sobre as costas de Arren. O tambor falhou uma pancada e depois voltou a soar, mas mais lento.

No meio do nevoeiro, não havia sensação de movimento em frente. Só o balanço e os puxões dos remos. O pulsar do tambor soava abafado. Fazia um frio úmido. A névoa, condensando-se nos cabelos de Arren, escorreu-lhe para os olhos. Tentou apanhar as gotas com a língua e aspirou o ar úmido pela boca aberta para apaziguar a sede. Mas só conseguiu ficar a bater os dentes. O metal gelado de uma corrente balançou-lhe de encontro a uma anca e queimou como fogo onde tocara. Ouviu-se uma pancada do tambor, depois outra, depois parou.

Fez-se silêncio.

— Mantém a batida! Que é que se passa? — rugiu a voz rouca e sibilante, à proa. Não houve resposta.

O navio balançou um pouco no mar calmo. Para lá das amuradas, indistintas, nada havia. Vazio. Algo raspou contra o flanco do navio. Naquele estranho silêncio de morte, naquela escuridão, o ruído soou forte.

— Encalhamos — segredou um dos prisioneiros. Mas o silêncio cerrou-se sobre a sua voz.

O nevoeiro tornou-se claro como se uma luz desabrochasse no seu seio. Arren viu nitidamente as cabeças dos homens acorrentados junto dele, as minúsculas gotas de umidade a brilharem-lhes nos cabelos. O navio voltou a balançar e ele esticou-se até onde as correntes o permitiam, estendendo o pescoço, para ver mais para a frente, no navio. O nevoeiro brilhava sobre o convés como a luz por trás de nuvens delgadas, frio e resplandecente. Os remadores estavam imóveis, como estátuas. Havia tripulantes no meio do navio, com os olhos a brilhar ligeiramente. Sozinho, a bombordo, erguia-se um homem, e era dele que vinha a luz, do seu rosto, das suas mãos e do bordão que ardia como prata derretida.

Aos pés do homem resplandecente, agachava-se uma forma escura.