As casas eram muito curiosas, com pequenas janelas distribuídas ao acaso e telhados cobertos com ramos de harbah, todos verdes de musgo e liquens. Fora uma ilha rica, para uma ilha das Estremas, o que era ainda visível nas casas bem pintadas e bem providas do necessário, nas grandes rodas de fiar e nos teares em cabanas e oficinas, nos cais de pedra do pequeno porto de Sosara, onde várias galeras mercantes podiam atracar. Mas não havia galeras no porto. A pintura das casas estava desbotada, não havia mobílias novas e, na sua maior parte, rodas e teares estavam parados, cobertos de pó e com teias de aranha entre pedal e pedal, entre urdidura e bastidor.
— Mágicos? — espantou-se o regedor de Sosara, um homem de pequena estatura, com uma cara tão dura e castanha como as solas dos seus pés descalços. — Não há mágicos em Lorbanery. Nem nunca os houve.
— Quem havia de dizer? — comentou o Gavião em tom admirado. Estava sentado em companhia de oito ou nove aldeãos, bebendo vinho de bagas de harbah, uma colheita aguada e amarga. Tivera de lhes dizer que viera à Estrema Sul em busca de pedra emmel, mas não se disfarçara nem ao companheiro, à exceção do fato de Arren ter deixado a espada escondida no barco, como de costume, e de o bordão do Gavião, se é que o trazia consigo, não estar à vista. A princípio, os aldeãos tinham-se mostrado carrancudos e hostis e estavam dispostos a ficarem de novo carrancudos e hostis a qualquer momento. Só graças à esperteza e autoridade do Gavião fora possível forçá-los a uma aceitação de má vontade.
O mago tentou nova abordagem.
— Grandes homens devem ter aqui para tratar de árvores. O que fazem eles quando há uma geada fora de tempo nos pomares?
— Nada — respondeu um homem magricela que se sentava no fim da fila de aldeãos. Estavam todos em linha, com as costas encostadas à parede da estalagem, sob o beirai do telhado de ramagens. Logo à frente dos seus pés nus, as gotas grossas e suaves da chuva de Abril tamborilavam na terra.
— O problema está mais na chuva e não na geada — esclareceu o regedor. — Apodrece os casulos das lagartas. Não há homem nenhum que vá fazer parar a chuva. Nem nunca houve.
Havia no homem uma beligerância sempre que se falava de mágicos e de bruxedos. Mas alguns dos outros pareciam mais dispostos a falar do assunto.
— Nunca costumava chover nesta altura do ano — adiantou um deles — quando o velhote estava vivo.
— Quem? O velho Mildi? Pois sim, mas não está vivo. Está morto — repontou o regedor.
— Costumávamos chamar-lhe o Pomareiro — recordou o homem magro.
— Sim, era isso. Chamávamos-lhe o Pomareiro — apoiou um outro.
E o silêncio desceu sobre eles, como a chuva.
Dentro da janela da estalagem, que só tinha uma divisão, sentara-se Arren. Descobrira um velho alaúde pendurado na parede, um alaúde de braço comprido e três cordas, como os que costumam tocar na Ilha da Seda, e o jovem pusera-se a brincar com o instrumento, tentando tirar dele alguma música, mas pouco mais ruído fazendo que o tamborilar da chuva no telhado.
— Nos mercados da Cidade de Hort — voltou o Gavião à carga — vi venderem tecido, dizendo que era seda de Lorbanery. Algum era seda. Mas nenhuma era seda de Lorbanery.
— As estações têm sido más — lamentou o magricela. — Há quatro, não, há cinco anos.
— Cinco anos, exatamente, desde a véspera do Dia dos Alqueives — acrescentou um velhote que parecia mastigar as palavras e falava num tom presunçoso. — Desde que o velho Mildi morreu, sim, que ele morreu, sim senhor, e nem perto estava da idade que eu tenho agora. Pois, e morreu na véspera do Dia dos Alqueives, tal e qual.
— A escassez faz subir os preços — interpôs o regedor. — Por um rolo de semifina tingida de azul recebemos agora o que costumávamos receber por três.
— Se recebermos. Qu’é dos barcos? E o azul é falsificado — contrariou o magricela, dando assim origem a uma discussão que durou meia hora acerca da qualidade das tinturas que usavam nas grandes oficinas de tinturaria.
— Quem faz as tinturas? — perguntou o Gavião. E logo rebentou nova disputa. O que dela ressaltou foi que todo o processo de tinturaria estivera a cargo de uma família cujos membros se diziam realmente feiticeiros. Mas se alguma vez o tinham sido, haviam perdido a arte e ninguém mais a tinha encontrado, como acentuou azedamente o homem escanzelado. Porque todos, exceto o regedor, estavam de acordo em que os famosos corantes azuis de Lorbanery e o inimitável carmesim, o chamado «fogo de dragão» usado pelas rainhas em Havnor há muito tempo atrás, já não eram o que tinham sido. Algo deles se perdera. A culpa era lançada para cima das chuvas fora de tempo, dos pigmentos ou dos refinadores das tinturas.
— Ou dos olhos — largou o magricela — de gente que não é capaz de distinguir entre o azul autêntico e lama azul.
E abriu muito os olhos para o regedor. Mas, como este não aceitasse o desafio, remeteram-se de novo ao silêncio.
O vinho aguado parecia servir apenas para lhes tornar mais azedo o temperamento e os seus rostos estavam carrancudos. O único som que se ouvia agora era o rumorejar da chuva nas incontáveis folhas dos pomares do vale, o sussurro do mar lá ao fundo da rua e o murmúrio do alaúde no interior escuro da estalagem.
— Será que esse rapazinho com ares de donzela que veio contigo sabe cantar? — perguntou o regedor.
— Sabe, sim, sabe cantar. Arren! Canta-nos alguma coisa, rapaz.
— Não consigo que este alaúde saia do modo menor — respondeu Arren, sorrindo, da janela. — Quer lamentar-se. E então o que querem os meus anfitriões ouvir?
— Qualquer coisa nova — resmungou de mau modo o regedor.
O alaúde soltou um breve trilo. O rapaz já lhe tinha tomado o jeito.
— Talvez isto seja novo, aqui — aventou ele. E logo cantou:
Pelos brancos estreitos de Soléa e o inclinar dos ramos vermelhos que baixaram as flores sobre a sua cabeça inclinada, vergada ao peso da sua dor pelo amado perdido, pelo ramo vermelho e o ramo branco e o sofrer sem fim eu te juro, Serriadh, filho de minha mãe e de Morred, recordar o mal que te foi feito para sempre, para sempre.
Quedaram-se imóveis e silenciosos, com seus rostos amargos, seus corpos e mãos marcados pelo trabalho árduo. Quedaram-se assim no morno e chuvoso crepúsculo meridional e ouviram aquela canção, semelhante ao grito do cisne cinzento dos frios mares de Éa, anelante, dolorido. E imóveis, silenciosos, permaneceram ainda por algum tempo depois que o canto acabou.
— É uma música estranha — aventurou um deles, pouco seguro.
E logo outro, de novo seguro quanto à absoluta centralidade da ilha de Lorbanery em relação a todo o tempo e todo o espaço, acrescentou:
— A música dos estranhos é sempre estranha e tristonha.
— Dêem-nos uma amostra da vossa — propôs o Gavião. — A mim também não me desagradava ouvir uma quadra alegre. O rapaz só sabe cantar coisas de antigos heróis já mortos.
— Farei isso — aquiesceu o último que falara. Tossicou um pouco e começou a cantar qualquer coisa acerca de um barril de vinhaça, forte e de raça, e vá que não cansa, vamos à dança! Mas ninguém o acompanhou no refrão e o «vamos à dança» saiu-lhe chocho.