— Já ninguém sabe cantar — disse, raivosamente. — A culpa é da gente nova, sempre a variar e a mudar a maneira de fazer as coisas, e sem querer ouvir as velhas cantigas.
— Não é isso — contrariou o magricela. — Já ninguém sabe é nada de nada. Já não há coisa nenhuma que ande direita.
— Pois, pois, pois — arquejou o mais velho. — Acabou-se a sorte. Isso é que foi. Acabou-se a sorte.
Depois disto não houve muito a dizer. Os aldeãos foram-se indo embora aos dois e aos três, até que só ficaram o Gavião fora da janela e Arren do lado de dentro. E, por fim, o Gavião riu-se. Mas não era uma risada alegre.
A tímida mulher do estalajadeiro veio fazer-lhes umas camas no chão e foi-se embora, e eles acomodaram-se para dormir. Mas as altas traves da sala eram morada de morcegos. Toda a noite os morcegos andaram dentro e fora, voando pelas janelas sem vidraças e soltando guinchos muito agudos. Só ao amanhecer regressaram todos e se aquietaram, tomando cada um o aspecto de uma pequena, simples e cinzenta embalagem, pendendo de uma trave de cabeça para baixo.
Terá sido talvez a agitação dos morcegos que tornou o sono de Arren pouco tranqüilo. Havia já muitas noites que ele não dormia em terra firme. O seu corpo desabituara-se daquela imobilidade do chão de maneira que, quando caía no sono, vinha-lhe a insistente sensação de estar a balançar, a balançar… até que o mundo caía de debaixo dele e o rapaz acordava com um tremendo sobressalto. Quando finalmente conseguiu adormecer, sonhou que estava acorrentado no porão do navio dos escravos. Havia outros acorrentados como ele, mas estavam todos mortos. Acordou mais que uma vez desse sonho, lutando por se libertar, mas assim que voltava a adormecer logo reentrava nele. Por fim, pareceu-lhe que estava totalmente só no navio, mas ainda acorrentado, de modo a não se poder mover. E então uma voz lenta e estranha falou-lhe ao ouvido, dizendo: «Solta as tuas cadeias. Solta as tuas cadeias.» Tentou mover-se e conseguiu. Pôs-se de pé. Estava algures numa charneca, vasta e imprecisa, sob um céu pesado. Havia horror na terra e no ar espesso, uma enormidade de horror. Aquele lugar era de medo, era o próprio medo. E ele estava ali e não havia caminhos. Tinha de encontrar o seu rumo, mas não havia caminhos, e ele era mínimo, como uma criança, como uma formiga, e o local era enorme, infindável. Tentou andar, tropeçou, acordou.
O medo estava dentro dele, agora que tinha acordado e já não estava dentro do medo. Mas nem por isso deixara de ser enorme, infindável. Sentiu-se sufocado pela negra escuridão da sala e procurou as estrelas no quadrado impreciso que era a janela mas, embora a chuva tivesse parado, não havia estrelas. Deixou-se ficar deitado, desperto, e sentia medo, e os morcegos voavam dentro e fora com as suas silenciosas asas de couro. Por vezes, ouvia as suas finas vozes mesmo no limite da audição.
A manhã nasceu clara e levantaram-se cedo. O Gavião pôs-se a perguntar por pedra emmel com grande convicção. Embora nenhum dos aldeãos soubesse o que era tal coisa, todos tinham teorias sobre a pedra emmel e discutiam-nas entre eles. E o Gavião escutava, embora o que pretendia ouvir nada tivesse a ver com a pedra emmel. Finalmente, ele e Arren enveredaram por um caminho que lhes foi indicado pelo regedor, em direção às pedreiras de onde se extraía o pó de tingir azul. Mas, a certa altura do caminho, o Gavião desviou-se.
— Deve ser esta a casa — calculou. — Disseram que a tal família de tintureiros e mágicos desacreditados vivia nesta estrada.
— Irá servir de alguma coisa falar com eles? — duvidou Arren que se lembrava demasiado bem do Lebre.
— Há um centro para esta má sorte — disse o mágico, rispidamente. — Há um lugar por onde a sorte se esgota. Preciso de alguém que me guie até lá.
E seguiu caminho, pelo que Arren não teve outro remédio senão acompanhá-lo.
A casa ficava desviada do caminho, no meio dos seus próprios pomares, um belo edifício de pedra, mas tanto ele como todo o terreno adjacente há muito que não eram devidamente cuidados. Casulos de bichos-da-seda por apanhar pendiam, desbotados, entre os ramos por podar e o chão, por baixo, estava cheio de lagartas e borboletas mortas. Ao redor da casa, sob as árvores muito juntas, havia um odor de podridão e, ao aproximarem-se dela, Arren recordou o horror que o tinha invadido na noite anterior.
Antes mesmo que alcançassem a porta, esta abriu-se de repelão e cá para fora saltou uma mulher de cabelos grisalhos, de olhos arregalados e raiados de vermelho, aos berros:
— Fora daqui, amaldiçoados sejam, ladrões, caluniadores, cretinos, aldrabões, bastardos! Saiam, fora, desandem! Que a má sorte vos caia em cima para sempre!
O Gavião estacou, parecendo algo confuso, e ergueu rapidamente a mão num gesto curioso. E disse uma única palavra:
— Desvia!
Perante isto, a mulher parou de gritar e olhou fixamente para ele.
— Porque é que fizeste isso?
— Para desviar a tua maldição.
Ela olhou-o ainda um bocado e por fim, com voz rouca, perguntou:
— Estrangeiros?
— Vindos do Norte.
Ela então aproximou-se. Ao princípio, Arren estivera tentado a rir-se dela, daquela velha a guinchar à porta de casa, mas de mais perto apenas sentiu vergonha. Estava imunda e mal vestida, o seu hálito era fedorento e nos seus olhos havia um terrível véu de dor.
— Não tenho poder para amaldiçoar — confessou. — Não tenho poder. — Imitou o gesto que o Gavião fizera e perguntou: — Ainda se faz isso, lá de onde vêm?
Ele assentiu com um aceno de cabeça. Observou-a frontalmente e ela retribuiu-lhe o olhar. Por fim, o seu rosto começou a contorcer-se e a mudar, e ela perguntou:
— Onde está o pau?
— Eu não o mostro aqui, irmã.
— Não, nem deves. Afasta-te da vida. É como o meu poder. Também me afastava da vida. De maneira que o perdi. Perdi todas as coisas que sabia, todas as palavras e nomes. Saíram em fiozinhos, como se fossem de teia de aranha, para fora dos meus olhos e da minha boca. Há um buraco no mundo por onde a luz o está a deixar sair. E as palavras vão com a luz. Não sabias disto? O meu filho fica o dia inteiro sentado a olhar para o escuro, à procura do buraco que há no mundo. Diz que poderia ver melhor se fosse cego. Já não tem o jeito para tintureiro. Nós éramos os Tintureiros de Lorbanery. Vê!
Sacudiu-lhes perante os olhos os seus braços magros, musculosos, manchados até ao ombro com uma mistura indistinta, às faixas, de indeléveis tinturas.
— Nunca me vai sair da pele — acrescentou ela — mas o espírito está lavado. Não segura as cores. Quem são vocês?
O Gavião nada disse. Uma vez mais, o seu olhar se cruzou com o da mulher e o susteve. E Arren, a um lado, observava a cena, constrangido.
De repente, a mulher estremeceu e disse num sussurro:
— Eu conheço-te…
— Assim é. Os que se assemelham conhecem-se, irmã. Estranha coisa era ver como ela tentava afastar-se do mago, aterrorizada, querendo escapar-lhe, e ao mesmo tempo ansiava por dele se aproximar, como se quisesse ajoelhar aos seus pés. Ele pegou-lhe na mão e manteve-a nas suas.
— Desejarias ter o teu poder de volta, os talentos, os nomes? Posso dar-te.
— Tu és o Grande Homem — sussurrou ela. — Tu és o Rei das Sombras, o Senhor do Lugar Tenebroso…
— Não, não sou. Não sou rei algum. Sou um homem, um mortal, teu irmão e teu semelhante.
— Mas tu não morrerás?
— Morrerei.
— Mas voltarás e viverás para sempre.
— Eu não. Nem homem algum.