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— Então tu não és… não és o Grande Homem no meio das trevas — concluiu ela, olhando-o um pouco de soslaio, com menos temor. — Mas és um Grande. Há então dois? Qual é o teu nome?

O rosto severo do Gavião abrandou por um momento.

— Isso não te posso dizer — pronunciou ele suavemente.

— Vou dizer-te um segredo. — A mulher endireitara-se, olhando-o agora de frente, e havia na sua voz, na sua postura, o eco de uma antiga dignidade. — Eu não quero viver e viver e viver para sempre. Antes queria ter de volta os nomes das coisas. Mas todos se foram. Os nomes já não interessam. Já não há segredos. Queres saber o meu nome?

Os olhos encheram-se de luz, os seus punhos cerraram-se e ela inclinou-se para a frente, sussurrando:

— O meu nome é Ákaren. E logo bradou muito alto:

— Ákaren! Ákaren! O meu nome é Ákaren! Agora todos sabem o meu nome secreto, o meu nome verdadeiro, e não há segredos, e não há verdade, e não há morte… morte… morte!

Exclamou a palavra, soluçando, a saliva a saltar-lhe dos lábios.

— Sossega, Ákaren!

Ela sossegou. Lágrimas corriam-lhe pelas faces sujas, atravessadas pelas farripas do seu cabelo cinzento, solto.

O Gavião tomou nas mãos aquele rosto enrugado, babujado de lágrimas, e muito levemente, muito ternamente, beijou-lhe os olhos. Ela ficou imóvel, de olhos fechados. Depois, aproximando os lábios do seu ouvido, o mago disse algumas palavras na Antiga Fala, beijou-a uma vez mais e baixou as mãos.

Ela abriu uns olhos límpidos e fitou-o por uns momentos, com um olhar pensativo e surpreso. Assim olha a sua mãe uma criança acabada de nascer, assim uma mãe olha o seu filho. Depois, voltou costas lentamente, dirigiu-se para a porta de casa, entrou e fechou-a atrás de si, sempre em silêncio, sempre com a mesma expressão de surpresa no rosto.

Em silêncio, o mago voltou costas e de novo se encaminhou para a estrada. Arren seguiu-o, sem se atrever a fazer a mínima pergunta. Mas a certa altura o mago parou, ainda dentro do mal tratado pomar, e disse:

— Tomei o nome dela e dei-lhe um novo. E assim, de certo modo, a fiz voltar a nascer. Não havia qualquer outra ajuda ou esperança para ela.

A sua voz soava tensa e sufocada.

— Ela era uma mulher de poder — prosseguiu. — Não uma simples bruxa ou fazedora de poções, mas uma mulher de arte e perícia, usando o seu saber para criar beleza, uma mulher nobre e venerável. Era isso a sua vida. E tudo foi deitado a perder.

De súbito, voltou-se, encaminhou-se para os estreitos carreiros do pomar e ali ficou junto ao tronco de uma árvore, de costas para Arren.

O rapaz esperou por ele sob a luz do Sol, quente e ponteada pelas sombras das folhas. Sabia que o Gavião estava envergonhado de o sobrecarregar com a sua comoção. E, na realidade, nada havia que Arren pudesse fazer ou dizer. Mas o seu coração ia totalmente para o companheiro, não já com aquele primeiro ardor romântico, aquela adoração, mas dolorosamente, como se um elo tivesse sido arrancado ao mais profundo dele e forjado na forma de inquebrável laço. Porque nesse afeto que agora sentia havia compaixão, sem a qual o afeto é como o aço não temperado, e não forma um todo, e não é duradouro.

Por fim, o Gavião voltou para junto dele por sob a sombra verde do pomar. Nem um nem outro trocou uma palavra, e caminharam lado a lado. Já fazia calor. A chuva da noite anterior secara e os seus passos na estrada faziam erguer a poeira. A princípio, o dia parecera desolado e insípido a Arren, como que infectado pelos sonhos que tivera. Mas agora dava-lhe prazer a mordedura do sol e o alívio da sombra, agradava-lhe caminhar assim, sem ter de matutar em qual seria o destino a seguir.

E ainda bem que assim foi, porque nada conseguiram com a caminhada. A tarde passou-se a falar com os homens que extraíam o minério que dava os corantes e a regatear o preço de uns bocados do que eles diziam ser pedra emmel. No penoso caminho de regresso, com o Sol que declinava a bater-lhes na cabeça e no pescoço, o Gavião fez notar:

— Isto é malaquite azul. Mas também duvido que saibam a diferença em Sosara.

— Esta gente aqui é estranha — comentou Arren, aproveitando a deixa. — É a mesma coisa com tudo. Não sabem a diferença entre um artesão e um tecedor de encantamentos, entre artesanato e as artes mágicas. É como se não tivessem traços, diferenças, cores, claramente na cabeça. Para eles tudo é o mesmo. E tudo é cinzento.

— Assim é — concordou o mago, Pensativamente. Foi seguindo por um bocado de estrada, a cabeça encolhida entre os ombros, como um falcão. Embora de baixa estatura, caminhava com largas passadas. Finalmente perguntou: — O que achas que lhes falta?

Sem hesitar, Arren respondeu:

— Alegria de viver.

— Assim é — confirmou uma vez mais o Gavião, aceitando a afirmação de Arren e ponderando-a durante algum tempo. — Estou satisfeito — prosseguiu finalmente — por seres capaz de pensar por mim, rapaz… Porque eu sinto-me fraco e estúpido. Tenho estado com o coração dolorido desde esta manhã, desde que falamos com essa que era Ákaren. Não gosto de desperdícios nem de destruição. Não quero um inimigo. Se tenho de ter um inimigo, não quero ter de o procurar, de o encontrar, de o defrontar… Se é preciso ir à caça, o prêmio devia ser um tesouro e não uma coisa detestável e detestada.

— Um inimigo, meu Senhor? — interrogou Arren. O Gavião fez que sim com a cabeça.

— Quando ela falou do Grande Homem, do Rei das Sombras?… E o mago voltou a assentir, acrescentando:

— Creio que sim. Creio que teremos de dar, não com um lugar, mas com uma pessoa. Isto é o mal, o mal, o que se passa nesta ilha, esta perda de talento e de orgulho, esta falta de alegria, este desperdício. Isto é obra de uma vontade má. Mas uma vontade que nem sequer se dirige para aqui, que nem sequer dá por Ákaren ou Lorbanery. O rastro que seguimos é um rastro de destruição, como se seguíssemos uma carroça desgovernada montanha abaixo e a víssemos provocar uma avalancha.

— Não poderia ela… Ákaren… dizer-te mais acerca desse inimigo? Quem é e onde está, ou o que é?

— Já não, rapaz — esclareceu o mago em voz suave mas onde havia uma tristeza fria. — Sem dúvida que teria podido. Na sua loucura ainda havia magia. A bem dizer, a sua loucura era a sua magia. Mas não pude forçá-la a responder-me. A dor que sofria era demasiada.

E continuou a caminhar, com a cabeça como que recolhida entre os ombros, ele próprio sofrendo, e desejando evitar, alguma grande dor.

Arren voltou-se para trás, ao ouvir uns passos apressados na estrada. Um homem seguia-os a correr, ainda a uma boa distância mas aproximando-se rapidamente. A poeira da estrada e o seu longo e hirsuto cabelo desenhavam auréolas vermelhas em seu redor na luz do poente e a sua longa sombra como que saltava e cabriolava fantasticamente ao longo dos troncos e carreiros dos pomares, junto à estrada.

— Ouçam! — gritava. — Parem! Encontrei-o! Encontrei-o! Numa última corrida, alcançou-os. A mão de Arren dirigiu-se primeiro para o sítio onde poderia ter estado o punho da sua espada, depois para o sítio onde estivera a faca que tinha perdido e depois cerrou-se em punho, tudo em metade de um segundo. Carregou o sobrolho e avançou. O homem era uma cabeça mais alto que o Gavião e tinha uns ombros muito largos. Ofegante, tresvariado, de olhos bravios, um louco.

— Encontrei-o! — continuava a repetir, enquanto Arren, tentando dominá-lo com uma voz e uma atitude severas, ameaçadoras, dizia:

— Que queres tu?

O homem tentou rodeá-lo e alcançar o Gavião, mas Arren voltou a pôr-se em frente dele.

— Tu és o Tintureiro de Lorbanery — pronunciou o Gavião.

Então Arren sentiu que tinha sido um tolo, tentando proteger o companheiro, e desviou-se para um lado. Porque perante as seis palavras pronunciadas pelo mago, o louco parou de ofegar e cessou o gesto de agarrar as suas mãos, grandes e manchadas. Os seus olhos aquietaram-se. Fez que sim com a cabeça.