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— Eu era o tintureiro — confirmou —, mas agora já não consigo tingir.

Depois olhou o Gavião de soslaio e arreganhou os dentes numa espécie de sorriso, sacudindo a cabeleira ruiva e empoeirada. Finalmente, disse:

— Tu tiraste o nome da minha mãe. Agora não a conheço, nem ela me conhece a mim. Ainda gosta de mim que chegue, mas deixou-me. Está morta.

O coração de Arren apertou-se mas viu que o Gavião se limitava a sacudir ligeiramente a cabeça, dizendo:

— Não, não. Ela não está morta.

— Mas virá a estar. Morrerá.

— É verdade. Essa é uma conseqüência de se estar vivo — confirmou o mago.

O Tintureiro pareceu considerar a frase durante um minuto e logo veio direito ao Gavião, agarrou-o pelos ombros e inclinou-se sobre ele. O movimento fora tão rápido que Arren não o pôde impedir, mas como se aproximou bastante, conseguiu ouvi-lo ciciar:

— Encontrei o buraco na escuridão. O Rei estava junto dele. É o Rei que o vigia, que o governa. Tinha uma pequena chama, uma velazinha, na mão. Ele soprou-a e apagou-se. Voltou a soprá-la e acendeu-se! Acendeu-se!

O Gavião não protestou por ser agarrado, nem por lhe ciciarem em cima da cara, limitando-se a perguntar:

— Onde estavas quando viste isso?

— Na cama.

— A sonhar?

— Não.

— Através da parede?

— Não — respondeu o Tintureiro, num tom subitamente sóbrio e como que pouco à vontade. Largou os ombros do mago e afastou-se dele um passo. — Não, eu… eu não sei onde está. Encontrei-o, mas não sei onde.

— Pois isso é que eu gostava de saber — adiantou o Gavião.

— Posso ajudar-te.

— Como?

— Tu tens um barco. Vieste até cá nele e vais seguir. Irás para oeste? É esse o caminho. O caminho para o lugar onde ele sai. Tem de haver um lugar, um lugar aqui, porque ele está vivo — não são só os espíritos, os fantasmas, que passam por cima do muro, não é assim — tu não podes trazer nada por cima da parede a não ser almas, mas isto é o corpo. Isto é a carne imortal. Eu vi a chama erguer-se na escuridão perante o seu sopro, a chama que estava extinta. Eu vi isso.

O rosto do homem transfigurara-se, uma beleza selvagem a desenhar-se nele sob a luz alongada, de um ouro avermelhado.

— Eu sei que ele venceu a morte — prosseguiu. — Sei isso. Entreguei a minha magia para saber isso. Fui um feiticeiro, em tempos! E tu sabes que é assim e vais até lá. Leva-me contigo.

A mesma luz brilhava sobre o rosto do Gavião, mas deixou-o imutável, severo.

— Estou a tentar ir até lá! — precisou ele.

— Deixa-me ir contigo!

O Gavião teve um breve aceno afirmativo de cabeça.

— Se estiveres pronto, quando partirmos… — pronunciou, tão friamente como antes.

O Tintureiro afastou-se dele mais um passo e quedou-se a observá-lo, com a exaltação do seu rosto a desaparecer lentamente até ser substituída por uma expressão estranha, pesada. Era como se o pensamento racional se estivesse a esforçar por atravessar a tempestade de palavras, sentimentos e visões que o confundiam. Finalmente, voltou costas sem uma palavra e deitou a correr de volta pela estrada, através da névoa de poeira que não assentara ainda no seu rasto. Arren soltou um longo suspiro de alívio.

O Gavião também suspirou, mas não como se o seu coração estivesse mais tranqüilo.

— Bem — resumiu. — Estradas estranhas terão estranhos guias. Continuemos.

Arren pôs-se a caminhar ao seu lado e perguntou:

— Não vais levá-lo conosco, pois não?

— Isso depende dele.

Com um relampejar de raiva no seu íntimo, Arren pensou: «Depende de mim, também.» Mas nada disse em voz alta, e continuaram a caminhar juntos, em silêncio.

No seu regresso a Sosara não foram bem acolhidos. Numa ilha pequena como Lorbanery, tudo se fica a saber logo que acontece e sem dúvida que os tinham visto desviarem-se para a Casa do Tintureiro e falarem com o louco na estrada. O estalajadeira serviu-os com maus modos e a mulher parecia temê-los de morte. Ao entardecer, quando os homens da aldeia vieram sentar-se debaixo do beiral da estalagem, deram muito bem a entender que não falariam com os estranhos, tentando mostrar-se muito espertos e jocosos entre eles. Mas não tinham grande esperteza a demonstrar e em breve se lhes esgotava a alegria. Ficaram todos calados durante muito tempo e, por fim, o regedor perguntou ao Gavião:

— Encontraram as vossas pedras azuis?

— Encontrei algumas pedras azuis — replicou o mago delicadamente.

— Com certeza que terá sido o Sopli a mostrar-vos o sítio onde procurá-las, não?

Ah-ah-aha, fizeram os outros homens perante este extraordinário exemplo de ironia.

— E Sopli seria quem? O homem do cabelo ruivo?

— Sim, o maluco. Foste visitar a mãe dele esta manhã.

— Andava à procura de um feiticeiro — explicou o feiticeiro. O homem magricela, que estava sentado mesmo ao pé dele, cuspiu para o chão e perguntou:

— Para quê?

— Pensei que talvez descobrisse alguma coisa acerca do que procuro.

— As pessoas vêm a Lorbanery em busca de seda — contrapôs o regedor. — Não vêm à procura de pedras. Nem de amuletos. E também não de braços a agitarem-se e algaraviadas e truques de mágicos. Aqui vive gente honesta que faz trabalho honesto.

— É mesmo assim. Ele tem razão — aprovaram os outros.

— E não queremos aqui outro gênero de gente, gente de terras estranhas que vêm cheirar e meter-se nas nossas coisas.

— E mesmo assim. Ele tem razão — voltou o coro.

— Se houvesse por aí um feiticeiro que não fosse maluco, nós até lhe dávamos um emprego honesto nas oficinas, mas esses nunca sabem como se faz trabalho honesto.

— Talvez soubessem, se houvesse algum — repontou o Gavião. — As vossas oficinas estão vazias, os pomares não são tratados e a seda que há nos vossos armazéns há anos que foi fiada. Que fazem vocês aqui, em Lorbanery?

— Tratamos daquilo que nos diz respeito — lançou bruscamente o regedor, mas o magricela intrometeu-se, muito excitado: — Porque não vêm os navios, diz-nos lá! Que andam eles a fazer na Cidade de Hort? É porque o nosso trabalho tem sido inferior?

Mas logo foi interrompido por furiosas negativas. Puseram-se a gritar uns com os outros, levantaram-se de um salto, o regedor sacudiu o punho fechado em frente do nariz do Gavião e outro puxou de uma faca. Tinham ficado todos como loucos. Arren pôs-se de pé num ápice e olhou para o Gavião, esperando vê-lo erguer-se, envolto na majestade da luz de mago, e emudecê-los a todos com o seu poder revelado. Mas não o fez. Limitou-se a deixar-se ficar sentado, a olhar de uns para os outros e a escutar as suas ameaças. E, pouco a pouco, acalmaram-se, como se lhes fosse tão impossível manter a raiva como a boa disposição. A faca foi embainhada, as ameaças transformaram-se em risos de desdém. Começaram a ir embora como cães depois de uma briga de cães, uns com ar pomposo, outros esgueirando-se furtivamente. Quando se viram os dois sós, o Gavião levantou-se, entrou na estalagem e tomou um longo trago de água da bilha junto à porta. Depois disse para Arren:

— Anda, rapaz. Isto para mim já chega.

— Vamos para o barco?

— Exatamente.

Colocou duas rodelas de prata, das usadas em comércio, no parapeito da janela, para pagar o alojamento, e pegou na trouxa das suas roupas. Arren sentia-se cansado e sonolento. Porém, olhou ao redor para a sala da estalagem, abafada e tétrica, e com todo aquele movimento nas traves do teto dos morcegos inquietos, pensou na noite anterior passada ali e seguiu o Gavião com toda a boa vontade. Pensou também, enquanto desciam a única e escura rua de Sosara, que partindo naquela altura se iam livrar do louco, Sopli. Mas quando chegaram ao porto, lá estava ele no cais à espera.