— Ora aí estás tu — acolheu-o o mago. — Entra lá no barco, se sempre queres vir.
Sem uma palavra, Sopli desceu para dentro do barco e agachou-se junto ao mastro, como um grande cão abandonado. Perante isto, Arren rebelou-se e bradou:
— Meu Senhor!
O Gavião voltou-se para ele e assim ficaram, frente a frente, sobre o cais acima do barco.
— Nesta ilha — prosseguiu Arren — são todos loucos, mas pensei que tu não fosses. Para que o levas?
— Levo-o como guia.
— Um guia! Para uma loucura ainda maior? Para a morte por afogamento, ou com uma faca cravada nas costas?
— Para a morte, sim, mas por que caminho, não sei.
Arren falara com ardor e, embora o Gavião lhe tivesse respondido calmamente, havia algo como um tom de ferocidade na sua voz. Não estava habituado a que lhe questionassem as ações. Porém, desde que Arren o tentara proteger do louco na estrada e vira como era vã e desnecessária essa proteção, o rapaz sentia uma amargura, e todo aquele emergir de devoção que experimentara de manhã se corrompera e desgastara. Era incapaz de proteger o Gavião. Não lhe era permitido tomar quaisquer decisões. Não podia sequer, ou não lhe era também permitido, compreender a natureza daquela demanda. Ia sendo simplesmente arrastado para ela, inútil como uma criança. Mas ele não era uma criança.
— Não desejaria travar-me de razões contigo, meu Senhor — pronunciou, tão friamente quanto lhe foi possível. — Mas isto… isto está para lá do razoável!
— Está, sim. Está para lá de tudo o que é razoável. Porque vamos onde a razão não pode levar-nos. Virás também, ou não?
Lágrimas de raiva brotaram dos olhos de Arren.
— Eu disse que viria contigo e te serviria. Não vou faltar à minha palavra.
— Isso é bom — anuiu o mago severamente e fez um movimento como para voltar costas. Mas encarou Arren de novo e prosseguiu: — Eu preciso de ti, Arren. E tu precisas de mim. Porque te direi agora que acredito ser este o caminho que deves seguir, não por obediência ou lealdade para comigo, mas porque era teu para o seguires mesmo antes de alguma vez me teres visto. Teu antes mesmo de teres posto pé em Roke. Teu antes de partires de Enlad. Não podes voltar atrás.
Entretanto, a sua voz não se suavizara e Arren retorquiu, com igual severidade.
— E como havia eu de voltar atrás, sem barco, neste fim de mundo?
— Isto, o fim do mundo? Não, esse fica mais longe. Talvez ainda lá cheguemos.
Arren limitou-se a fazer uma inclinação de cabeça e saltou para dentro do barco. O Gavião soltou a amarra e chamou um vento leve para a vela. Logo que se afastaram das vagas e vazias docas de Lorbanery, o vento começou a soprar, frio, diretamente do escuro Norte. A Lua ergueu-se prateada do mar chão à frente deles, rodando-lhes para a esquerda quando viraram para sul, a costear a ilha.
7
O LOUCO
O louco, o Tintureiro de Lorbanery, permanecia feito num molho de encontro ao mastro, os braços apertando os joelhos e a cabeça pendendo. A luz do luar, a sua massa de cabelo hirsuto parecia negra. O Gavião enrolara-se num cobertor e deixara-se adormecer na popa do barco. Nem um nem outro se movia. Arren ia sentado à proa. Jurara a si próprio vigiar toda a noite. Se o mago resolvera concluir que o seu lunático passageiro não se iria deitar a ele ou a Arren durante a noite, que lhe fizesse muito bom proveito. Porém, Arren tiraria as suas próprias conclusões e tomaria as suas próprias responsabilidades.
Mas a noite era muito longa e muito sossegada. O luar, imutável, escorria sobre o mundo. Enrodilhado junto ao mastro, Sopli ressonava longamente, suavemente. E foi suavemente que Arren deslizou para o sono. Acordou uma vez, com um sobressalto, e viu a Lua um quase nada mais alta. Então desistiu da guarda a que só por orgulho se obrigara, tomou uma posição mais confortável e deixou-se adormecer.
Voltou a sonhar como, ao que parecia, sempre lhe acontecia naquela viagem e, a princípio, os sonhos eram fragmentários mas estranhamente doces e tranqüilizadores. No lugar onde estava o mastro do Vê-longe, ergueu-se uma árvore com grandes braços de folhagem em arco. Cisnes guiavam o barco, voando em frente dele com largas arremetidas das asas poderosas. Muito ao longe, sobre o mar verde berilo, brilhava uma cidade de torres brancas. Depois, Arren estava numa dessas torres, subindo os degraus que a percorriam em espiral, correndo por eles acima com ligeireza e ardor. Estas cenas alteravam-se e voltavam a surgir e conduziam a outras que passavam sem deixar vestígios. Mas, de súbito, Arren estava de novo na luz crespuscular, temível e baça, da charneca e o horror foi crescendo dentro dele até não o deixar respirar. Mas seguiu em frente, porque tinha de seguir em frente. Depois de muito tempo, compreendeu que seguir em frente ali era descrever um círculo e voltar de novo às suas próprias pegadas. E no entanto tinha de sair, de se libertar. Foi-se tornando cada vez mais urgente fazê-lo. Começou a correr. Enquanto corria, os círculos começaram a estreitar e o solo a inclinar-se. Ia a correr no escuro que se adensava, mais depressa, cada vez mais depressa, ao redor da beira interior de um poço, beira que se ia afundando num enorme remoinho que tudo sugava para a escuridão lá em baixo. E, logo que entendeu isso, o seu pé escorregou e ele caiu.
— O que aconteceu, Arren?
O Gavião falava-lhe, lá da popa. Um amanhecer cinzento parecia manter imóveis céu e mar.
— Nada.
— Foi o pesadelo?
— Nada.
Arren estava frio e com o braço direito dolorido pois tivera-o preso debaixo de si. Fechou os olhos, a defendê-los da luz que ia aumentando e pensou: «Ele dá a entender isto e mais aquilo, mas nunca me vai dizer claramente para onde vamos, nem porquê e nem porque deveria eu ir até lá. E agora arrasta este louco conosco. Mas quem será mais doido, o lunático ou eu, por vir com ele? Eles os dois talvez se entendam um ao outro. Agora, são os feiticeiros que estão loucos, disse Sopli. E eu que já podia estar em casa, em casa, no Paço de Berila, no meu quarto de paredes trabalhadas e tapetes vermelhos no chão e um fogo na lareira, acordando para ir, junto com o meu pai, à caça com falcão. Porque vim eu com ele? Porque foi que ele me trouxe? Porque o caminho é meu para o seguir, diz ele, mas isso é conversa de feiticeiros, fazendo com que as coisas pareçam grandes com o uso de grandes palavras. Mas o significado das palavras está sempre noutro lado qualquer. Se tenho algum caminho que devo seguir é o da minha casa, e não andar a vaguear sem sentido através das Estremas. Tenho deveres a cumprir em casa e estou a furtar-me a eles. Se ele pensa realmente que há algum inimigo da feitiçaria em ação, porque veio ele sozinho, comigo? Podia ter trazido outro mago para o ajudar… cem magos. Podia ter trazido um exército de guerreiros, uma frota de navios. E assim que se enfrenta um grande perigo, enviando contra ele um velho e um rapaz num barco? Isto não passa de loucura. Ele próprio está louco. É como ele disse, busca a morte. Busca a morte e quer levar-me com ele. Mas eu não sou louco, nem velho. Não vou morrer. Não irei com ele.»
Soergueu-se sobre um cotovelo, olhando para lá da proa. A Lua, que se erguera diante deles ao deixarem a Baía de Sosara, estava de novo diante deles, a pôr-se. Para trás, a leste, ia surgindo o dia, baço e triste. Não havia nuvens, mas uma espécie de neblina alta, pálida e doentia. Mais para diante no dia, o Sol tornou-se quente mas brilhava velado, sem esplendor.