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Durante todo o dia costearam Lorbanery, baixa e verde à sua direita. Um vento ligeiro soprou de terra e enfunou-lhes a vela. A brisa esmoreceu. O Gavião chamou o vento mágico para a vela e, como um falcão solto do pulso, o Vê-longe arrancou e voou em frente ardorosamente, deixando para trás a Ilha da Seda.

Sopli, o Tintureiro, ficara acocorado no mesmo sítio todo o dia, claramente atemorizado pelo barco e pelo mar, enjoado e desditoso. Mas por fim falou, roucamente:

— Vamos para oeste?

O homem, de costas para a proa, tinha o Sol poente diretamente em frente dos olhos. Mas o Gavião, que era paciente com as suas mais estúpidas perguntas, acenou que sim.

— Para Obehol? — insistiu o outro.

— Obehol fica a oeste de Lorbanery.

— Muito, muito para oeste. Talvez o lugar seja aí.

— Como é ele, o lugar?

— Como hei de eu saber? Como é que podia vê-lo? Não é em Lorbanery! Procurei-o durante anos, quatro, cinco anos, no escuro, à noite, fechando os olhos, com ele sempre a chamar Vem, vem, mas eu não podia ir. Eu não sou senhor de feiticeiros para poder encontrar os caminhos na escuridão. Mas há um lugar onde ir com luz, à luz do Sol, também. Era isso que Mildi e a minha mãe não conseguiam entender. Continuavam a procurar no escuro. Depois o velho Mildi morreu e a minha mãe perdeu o tino. Esqueceu-se dos encantamentos que usamos para tingir e foi isso que lhe afetou o juízo. Ela queria morrer, mas eu disse-lhe que esperasse. Espera até que eu encontre o lugar. Tem de haver um lugar. Se os mortos podem voltar à vida no mundo, tem de haver um lugar no mundo onde isso acontece.

— Os mortos estão de volta à vida?

— Julguei que soubesses essas coisas — resmungou Sopli depois de uma pausa e olhando de soslaio para o Gavião.

— Procuro sabê-las.

Sopli nada disse. O mago olhou subitamente para ele, um olhar direto e dominador, embora mantivesse um tom de voz afável ao perguntar:

— Procuras uma maneira de viver para sempre, Sopli?

Por um momento, Sopli sustentou-lhe o olhar, mas logo escondeu a cabeça hirsuta, de um vermelho-acastanhado, nos braços, agarrando os tornozelos com as mãos, e pôs-se a balançar um pouco para a frente e para trás. Ao que parecia, era aquela a posição que adotava quando estava assustado. E quando a tomava não falava nem dava atenção a nada que se dissesse. Desesperado e entediado, Arren afastou-se dele. Com poderiam continuar, com Sopli, durante dias ou semanas, num barco de dezoito pés de comprimento? Era como compartilhar o mesmo corpo com uma alma doente…

O Gavião veio até junto de Arren à proa e colocou um joelho na amurada, espraiando a vista pelo pálido anoitecer. Depois comentou:

— O espírito do homem é de boa estirpe.

A isto, Arren não deu resposta, mas perguntou friamente:

— O que é Obehol? Nunca ouvi tal nome.

— Só sei o nome e o lugar nos mapas, mais nada… Mas olha, além. As companheiras de Gobárdon!

A grande estrela cor de topázio estava agora mais alta no céu, a sul, e por baixo dela, mesmo a rasar o mar indistinto, brilhavam uma estrela branca para a esquerda e uma branco-azulada para a direita, formando um triângulo.

— Têm nomes?

— O Mestre dos Nomes não sabia. Talvez as gentes de Obehol e Uélloguy tenham nomes para elas. Não sei. Navegamos agora para estranhos mares, Arren, sob o Signo do Acabar.

O rapaz não respondeu, olhando com uma espécie de aversão para as estrelas brilhantes e sem nome, acima das águas sem fim.

À medida que iam navegando para oeste, dia após dia, o calor da Primavera setentrional espraiava-se sobre as águas e o céu permanecia límpido. E no entanto parecia a Arren que havia algo de baço na luz, como se passasse obliquamente através de vidro. O mar estava morno quando nadava, trazendo pouco refrigério. A comida salgada não tinha sabor. Não havia frescura nem brilho em nada, a não ser à noite, quando as estrelas esplendiam com um fogo maior do que alguma vez nelas vira. E ao dormir, sonhava. E era sempre o sonho da charneca ou do poço, ou de um vale encerrado entre falésias ou de uma longa estrada a descer sob um céu baixo. E sempre a luz difusa, o terror que o tomava e o inútil esforço para fugir.

Nunca falou disto ao Gavião. Nem lhe falava de nada que fosse importante, referindo-se apenas aos pequenos incidentes diários da viagem. E o Gavião, por quem se tinha sempre de puxar, permanecia normalmente em silêncio.

Arren compreendia agora como tinha sido idiota ao confiar-se de corpo e alma àquele homem irrequieto e reservado, que se deixava levar por impulsos e não fazia o mínimo esforço para controlar a sua vida, nem sequer para a salvar. Porque agora entrara nele um desejo de morte. E isso, pensava Arren, porque não se atrevia a encarar a sua própria derrota, a derrota da feitiçaria como um grande poder entre os homens.

Tornara-se já claro, para aqueles que os conheciam, que não eram assim tantos os segredos dessa arte mágica de que o Gavião, e todas as gerações de feiticeiros e mágicos, tirara muita fama e poder. Não ia afinal muito além de usar o vento e o tempo, de conhecer as ervas que curavam e da demonstração talentosa de uma série de ilusões como névoas e luzes e mudanças de aspecto, que podiam deixar o ignorante boquiaberto, mas não passavam de meros truques. A realidade não ficava mudada. Nada havia na magia que conferisse ao homem verdadeiro poder sobre outros homens. Nem servia de nada contra a morte. Os magos não viviam mais tempo que os homens comuns. Nem todas as suas palavras secretas juntas conseguiam adiar por uma hora a chegada da morte.

Mesmo em assuntos de pouca monta, não valia a pena contar com a magia. O Gavião era sempre avaro quanto ao emprego das suas artes. Navegavam com o vento do mundo sempre que era possível, pescavam para comer e poupavam a água, como quaisquer outros marinheiros. Após quatro dias passados a velejar em ziguezague contra um teimoso vento de proa, Arren perguntou-lhe se não poderia invocar algum vento de feição para a vela e, ao vê-lo negar-se com um movimento de cabeça, perguntou:

— Porquê?

— Porque não iria pedir a um homem doente que entrasse numa corrida — respondeu o Gavião —, nem poria mais uma pedra sobre um dorso já sobrecarregado.

Não ficara claro se falava de si próprio ou do mundo em geral. Mas as suas respostas eram sempre dadas de má vontade e difíceis de compreender. Era aí, pensava Arren, que estava o verdadeiro fulcro da feitiçaria. Deixar entrever profundos significados sem dizer nada de nada, e conseguir que não fazer nada de nada parecesse o supra-sumo da sabedoria.

Arren tentara ignorar Sopli, mas era impossível. E, de qualquer modo, não tardou muito que não fizesse uma espécie de aliança com o louco. Porque Sopli não era tão louco, ou não tão simplesmente louco como o seu cabelo emaranhado e modo fragmentado de falar o faziam parecer. A verdade é que a maior loucura dele era o medo da água. Entrar num barco fora um ato de desesperada coragem e nunca chegou realmente a libertar-se do seu pavor. Mantinha a cabeça o mais baixo possível para não ter de ver a água ondulando e batendo no barco ao seu redor. Pôr-se de pé no barco deixava-o tonto e tinha de se agarrar ao mastro. Da primeira vez que Arren decidiu nadar e mergulhou da proa, Sopli soltou um brado de horror e, quando Arren voltou a subir para o barco, o pobre homem estava verde com o choque que sofrera.

— Julguei que te tinhas deitado a afogar — explicou. E Arren não pôde deixar de se rir.

Nessa tarde, enquanto o Gavião estava sentado a meditar, sem dar por nada e nada ouvindo, Sopli foi-se aproximando de Arren, agarrando-se cautelosamente aos bancos, e perguntou-lhe em voz baixa:

— Tu não queres morrer, pois não?

— Claro que não.

— Mas ele quer — segredou Sopli, com um leve desviar do maxilar inferior na direção do Gavião.