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— Rema! — arquejou ele e deixou-se cair sobre joelhos e mãos, a escorrer água e tentando recuperar o fôlego. Tinha na mão uma lança, uma lança de arremesso com ponta de bronze e dois pés de comprimento. Onde a fora ele arranjar? Outra lança surgiu enquanto Arren se debruçava estupefato sobre os remos. Embateu de lado contra um banco, estilhaçando a madeira, e ressaltou às cambalhotas. Nas escarpas baixas sobre a praia, debaixo das árvores, moviam-se figuras, lançando dardos e logo se agachando. O ar era percorrido por ligeiros assobios ou zunidos. Arren meteu subitamente a cabeça entre os ombros, vergou o dorso e pôs-se a remar com poderosos impulsos. Duas remadas para deixar os baixios, outra para voltar o barco e logo para longe dali.

Sopli, à proa do barco e por detrás das costas de Arren, pôs-se a gritar. Os braços de Arren foram subitamente agarrados de tal modo que os remos saltaram para fora de água. O punho de um deles bateu-lhe na boca do estômago, deixando-o por momentos cego e sem fôlego.

— Volta para trás! Volta para trás! — gritava Sopli. De súbito o barco saltou sobre a água e balançou. Arren, que conseguira voltar a agarrar os remos, voltou-se furioso. Sopli não estava no barco.

Em redor deles, a água profunda da baía ondulava e rebrilhava à luz do Sol.

Como que entorpecido, Arren olhou de novo para trás de si e depois para o Gavião, acocorado à popa.

— Além! — indicou o mago, apontando para um lado, mas nada se via, apenas o mar e o rebrilhar do sol. Uma lança, atirada com um pau de arremesso, falhou o barco por algumas jardas, entrou na água sem ruído e desapareceu. Arren deu mais dez ou doze fortes remadas, depois ciou e olhou uma vez mais o Gavião. As mãos e o braço esquerdo do mago estavam manchados de sangue e ele segurava um pedaço de pano de vela dobrado contra o ombro. A lança com a sua ponta de bronze jazia no fundo do barco. Afinal não a estivera a segurar nas mãos quando Arren a vira pela primeira vez. Estivera, sim, cravada no cavado do ombro, onde a ponta mergulhara. E agora o Gavião esquadrinhava a água entre eles e a praia branca, onde algumas figuras minúsculas saltavam e pareciam ondular na reverberação. Por fim, disse:

— Segue.

— Sopli…

— Não voltou à superfície.

— Afogou-se? — perguntou Arren incredulamente. O Gavião limitou-se a um aceno de cabeça afirmativo. Arren remou até a praia não ser mais que uma linha branca abaixo das florestas e dos grandes cumes verdes. O Gavião permaneceu ao leme, segurando o chumaço de vela de encontro ao ombro mas sem lhe prestar atenção.

— Foi uma lança que o atingiu? — quis saber Arren.

— Não. Saltou.

— Mas ele… ele não sabia nadar. Tinha medo da água!

— Sim, um medo mortal. Mas queria… Queria chegar a terra.

— Porque foi que nos atacaram? Que gente é aquela?

— Devem ter-nos tomado por inimigos. És capaz de me dar aqui uma ajuda por um bocado?

Arren viu então que o pano que ele segurava contra o ombro estava ensopado e de um vermelho-vivo. A lança atingira-o entre a articulação do ombro e a clavícula, rasgando uma das grandes veias, pelo que sangrava abundantemente. Seguindo as indicações do Gavião, Arren rasgou tiras de uma camisa de linho e lá se arranjou o melhor possível para lhe ligar a ferida. O Gavião pediu-lhe então a lança e, depois de Arren lha ter colocado sobre os joelhos, pousou a mão direita sobre a ponta, comprida e estreita como uma folha de salgueiro e feita de bronze toscamente martelado, e pareceu querer falar mas, passado um minuto, sacudiu a cabeça.

— Não me restam forças para esconjuros — admitiu. — Mais tarde. Não haverá problema. Achas que nos podes levar para fora desta baía, Arren?

Em silêncio, o rapaz voltou para os remos. Curvou o dorso a iniciar a tarefa e em breve, pois havia energia no seu corpo esguio e ágil, conseguiu trazer Vê-longe para fora do crescente da baía, entrando no mar aberto. Sobre as águas estendia-se a longa calma do meio-dia da Estrema. A vela pendia inerte. O Sol ofuscava através de um véu de neblina e os altos cumes pareciam abanar e tremular no grande calor. O Gavião estendera-se no fundo do barco, com a cabeça encostada ao banco junto do leme. Estava muito quieto, os lábios e as pálpebras semiabertos. Arren não gostou de lhe olhar o rosto, pelo que preferiu fitar o mar por sobre a popa. A neblina do calor ondulava por cima das águas, como se houvesse véus de teia de aranha a serem tecidos por todo o céu. Os braços tremiam-lhe de cansaço, mas continuou a remar.

— Para onde nos levas? — perguntou o Gavião roucamente, erguendo um pouco o tronco. Arren virou-se para trás e viu o crescente da baía encurvando mais uma vez os seus braços verdes em redor do barco, a linha branca da praia mesmo em frente e a massa das montanhas lá por cima, no ar. Sem dar por isso, tinha feito rodar o barco de volta para a ilha.

— Não consigo remar mais — confessou, arrumando os remos e indo agachar-se na proa. Não conseguia deixar de pensar que Sopli estava atrás dele no barco, junto ao mastro. Tinham passado muitos dias juntos e a sua morte fora demasiado súbita, demasiado insensata, para ser entendida. Nada se conseguia entender.

O barco oscilava sobre a água, a vela pendia bamba da verga. A maré, começando a entrar na baía, virou lentamente o flanco do Vê-longe até ficar paralelo ao fluxo da corrente e foi-o impelindo, a pouco e pouco, cada vez mais para dentro, em direção à distante linha branca da praia.

— Vê-longe — pronunciou meigamente o mago, dizendo ainda uma ou duas palavras na Antiga Fala. E, suavemente, o barco balançou, voltou a proa para o largo e deslizou por sobre o mar ardente, afastando-se dos braços da baía.

Mas, lenta e suavemente, em menos de uma hora deixou de navegar e a vela voltou a pender, inerte. Arren olhou para trás e viu o companheiro, deitado como antes, mas a sua cabeça descaíra um pouco e tinha os olhos fechados.

Todo aquele tempo, Arren sentira crescer dentro de si um horror pesado e doentio que o impedia de agir como se mantivesse o seu corpo e o seu espírito envolvidos em delgados fios. Nele não havia coragem que se erguesse para combater o medo. Só uma espécie de mole ressentimento contra o que lhe coubera em sorte.

Não devia deixar o barco ir à deriva ali, perto daquelas costas rochosas de uma terra cuja gente atacava os estranhos. Isto estava claro no seu espírito, mas não tinha grande significado. Que devia ele fazer em vez disso? Levar o barco de volta a Roke à força de remos? Estava perdido, perdido para lá de qualquer esperança, na vastidão da Estrema. Nunca poderia trazer o barco de volta ao longo daquelas semanas de viagem até uma terra amiga. Só com a orientação do mago o conseguiria fazer. E o Gavião estava ferido e impotente, tão súbita e incoerentemente como Sopli morrera. O seu rosto estava mudado, de um tom amarelado e as feições frouxas. Podia estar a morrer. Arren pensou que talvez devesse levá-lo para debaixo do toldo, para o defender do sol, e dar-lhe água, Os homens que perdiam sangue precisavam de beber. Mas já há dias que a água era pouca. O barril estava quase vazio. E, também, o que interessava? Não havia nada que valesse a pena, que servisse de alguma coisa. A sorte esgotara-se.

Passaram as horas, o Sol dardejava sobre eles os seus raios e o calor cinzento envolvia Arren por todos os lados. Deixou-se ficar sentado, imóvel.

Um leve sopro de frescura passou-lhe pela fronte. Levantou os olhos. Era o entardecer e o Sol já estava baixo, o ocidente de um vermelho baço. O Vê-longe movia-se lentamente ao sabor de uma brisa de leste, contornando as costas escarpadas, cobertas de arvoredo, de Obehol.