— Agora te invoco e aqui, meu inimigo, perante os meus olhos e em carne e osso, e te obrigo, pela palavra que não será pronunciada até ao fim dos tempos, a que venhas!
Mas onde o nome do invocado devia ter sido pronunciado, Gued dissera apenas: Meu inimigo.
Houve um silêncio, como se o som do mar se houvesse apagado. Pareceu a Arren que o Sol enfraquecia e se tornava obscuro, embora permanecesse alto num céu sem nuvens. Estendeu-se uma escuridão sobre a praia, como quando alguém olha através de vidro fumado. Diretamente à frente de Gued ficou muito escuro e era difícil ver o que ali estava. Era como se nada lá houvesse, nada sobre que a luz pudesse cair, uma ausência de forma.
E daí, subitamente, saiu um homem. Era o mesmo que tinham visto sobre a duna, de cabelos pretos e longos braços, esguio e alto. Trazia agora na mão uma longa vara ou lâmina de aço, gravada em toda a sua extensão com runas, e inclinou-a na direção de Gued, ao enfrentá-lo. Mas havia algo de estranho na expressão dos seus olhos, pois era como se estivesse encandeado pelo Sol e não conseguisse ver.
— Venho — clamou — por minha própria escolha e à minha maneira. Tu não podes invocar-me, Arquimago. Eu não sou uma sombra. Estou vivo. E só eu estou vivo! Tu julgas que o estás, mas estás a morrer, a morrer. Sabes o que é isto na minha mão? É o bordão do Mago Cinzento, aquele que silenciou Nereguer, o Mestre da minha arte. Mas hoje sou eu o Mestre. E já me chega de brincar contigo.
E, dizendo isto, estendeu subitamente a lâmina de aço para tocar Gued que estava como se não pudesse mover-se nem falar. E Arren, um passo atrás dele, usava de toda a sua força de vontade para se mover, mas não conseguia, nem podia sequer levar a mão ao punho da espada, e a sua voz tinha-se-lhe emudecido na garganta.
Mas sobre Gued e Arren, acima das suas cabeças, vasto e ardente, o grande corpo do dragão surgiu num salto serpenteado e mergulhou com todo o seu peso sobre o outro, de tal modo que a lâmina de aço encantada penetrou totalmente no peito armadurado do dragão. Mas também o homem foi lançado por terra sob o seu peso, e esmagado, e queimado.
Voltando a erguer-se sobre a areia, arqueando o dorso e batendo as asas articuladas, Orm Embar vomitou golfadas de fogo e gritou alto. Tentou voar, mas não podia voar. Maligno e frio, o metal permanecia no seu coração. Agachou-se e o seu sangue escorreu-lhe da boca, negro e venenoso, e o fogo morreu nas suas narinas até estas se tornarem quais poços de cinza. Deixou cair a cabeçorra enorme na areia.
Assim morreu Orm Embar onde morrera o seu antepassado Orm, sobre os ossos de Orm, enterrados na areia.
Mas onde Orm ferira e derrubara o inimigo, algo hediondo e encarquilhado jazia, como o corpo de uma grande aranha que houvesse secado na sua teia. Fora queimado pelo sopro do dragão e esmagado pelos seus pés armados de garras. E contudo, perante os olhos de Arren, moveu-se. Rastejou para uma pequena distância do dragão.
O rosto da coisa ergueu-se para eles. Já nada restava nele de agradável à vista, só uma ruína, a velhice que tinha vivido para além da velhice. A boca estava mirrada. As órbitas dos seus olhos estavam vazias e desde há muito que assim era. E assim viram Gued e Arren o rosto vivo do seu inimigo.
Desviou-se deles. Os braços queimados, enegrecidos, estenderam-se e dentro deles se formou uma escuridão, aquela mesma escuridão informe que crescera até obscurecer o Sol. Entre os braços do Anulador era como uma entrada ou portal, embora indefinido, sem contornos. E para lá dela não havia areia pálida, nem oceano, mas apenas um longo declive de escuridão mergulhando no negrume.
Para aí se dirigiu a figura esmagada, rastejante, e ao entrar na escuridão pareceu erguer-se e mover-se rapidamente, e logo desapareceu.
— Vem, Lebánnen — incitou Gued, pousando a mão direita no braço do rapaz. E avançaram na direção da terra árida.
12
A TERRA ÁRIDA
O bordão de teixo luzia na mão do mago, no meio da escuridão baça que se adensava, com um brilho de prata. Um outro ligeiro movimento cintilante chamou a atenção de Arren. Um tremeluzir percorria a lâmina da espada que trazia nua no punho. Quando a arremetida do dragão quebrara o esconjuro de prender, ele desembainhara a espada, ali, sobre a praia de Selidor. E aqui, embora ele próprio não fosse mais que uma sombra, era uma sombra viva e empunhava a sombra da sua espada.
Nada mais havia que fosse brilhante em lado algum. Era como o crepúsculo, já tarde, no fim de Novembro, um ar parado, frio e austero, em que era possível ver, mas não claramente e não muito longe. Arren conhecia aquele lugar, as charnecas e baldios dos seus sonhos desesperados. Mas parecia-lhe que estava mais longe, imensamente mais longe, do que alguma vez estivera em sonhos. Não conseguia descortinar nada distintamente, a não ser que ele e o companheiro estavam na encosta de um monte e que, à sua frente, havia um muro baixo de pedras, não mais alto que o joelho de um homem.
Gued mantinha ainda a mão direita sobre o braço de Arren. Avançou e Arren avançou com ele, e passaram sobre o muro de pedras.
Informe, o longo declive continuava a descer em frente deles, mergulhando na escuridão.
Mas por cima, onde Arren julgara ir encontrar um pesado acumular de nuvens, o céu era negro e havia estrelas. Olhou-as e foi como se o coração se lhe encolhesse, pequeno e frio, dentro do peito. Não eram estrelas que alguma vez tivesse visto. Imóveis, sem piscar, luziam. Eram aquelas estrelas que não se põem nem nascem, nem são alguma vez ocultas por nuvem nenhuma, nem empalidecem sob Sol algum. Quietas e pequenas, luzem sobre a terra árida.
Gued começou a caminhar, descendo pelo lado de lá do monte do ser e, passo a passo, Arren seguiu-o. Havia nele um terror. No entanto, tão determinado estava o seu coração, tão firme a sua vontade, que o medo não o governava, nem tinha sequer clara consciência dele. Era apenas como se alguma coisa se afligisse no mais fundo do seu ser, tal um animal fechado numa sala e acorrentado.
Parecia que tinham percorrido uma grande distância descendo aquela encosta, mas talvez o caminho fosse curto afinal. Porque ali, onde nenhum vento soprava e as estrelas não se moviam, não havia passagem do tempo. Chegaram então às ruas de uma das cidades que ali existem, e Arren viu as casas com as janelas que nunca se iluminam e, em certas entradas, de pé, com rostos parados e mãos vazias, os mortos.
Todas as praças de mercado estavam vazias. Ali não havia vender nem comprar, nem ganhar nem gastar. Nada era usado, nada era feito. Gued e Arren percorreram sozinhos as estreitas ruas, embora por vezes avistassem uma figura a virar a esquina de outra rua, distante e mal visível na obscuridade. Da primeira vez que viu tal coisa, Arren sobressaltou-se e ergueu a espada para apontar o que vira, mas Gued sacudiu a cabeça e prosseguiu. Arren viu então que a figura era de uma mulher que se movia lentamente, sem fugir deles.
Todos os que viram — não muitos, porque os mortos são em grande número, mas aquela terra é vasta — permaneciam quietos ou moviam-se lentamente, sem qualquer finalidade. Nenhum deles ostentava ferimentos, como acontecera com a imagem de Erreth-Akbe invocado para a luz do Sol e no lugar da sua morte. Também não havia neles sinais de doença. Estavam intactos e curados. Curados de dor e de vida. Não eram abomináveis como Arren temera que fossem, nem assustadores do modo como pensara que seriam. Os seus rostos eram parados, libertos de paixão e de desejo, e nos seus olhos ensombrados não havia esperança.
E então, em vez de medo, foi uma imensa piedade que brotou em Arren e, se algum medo havia a sublinhá-la, não era por ele próprio, mas por todas as pessoas. Porque viu a mãe e o filho que tinham morrido juntos e juntos estavam na terra tenebrosa. Mas a criança não corria, nem chorava, e a mãe não a segurava ou sequer a olhava. E aqueles que tinham morrido por amor passavam uns pelos outros nas ruas, indiferentes.