— Eu nada temo — repetiu. — O que havia de temer um homem que está morto?
E riu. Mas o som do seu riso soou tão falso e inquietante, naquele vale estreito e pedregoso sob as montanhas, que Arren perdeu momentaneamente o fôlego. Mas apertou mais firmemente o punho da espada e escutou.
— Eu não sei o que um morto poderá temer — respondeu Gued. — A morte não, certamente. E no entanto pareces temê-la. Muito embora tenhas encontrado uma forma de lhe escapar.
— E encontrei. Eu vivo, o meu corpo vive.
— Não muito bem — replicou secamente o mago. — A ilusão poderá ocultar a idade. Mas Orm Embar não foi brando com esse corpo.
— Posso restabelecê-lo. Conheço segredos de curar e de rejuvenescer, não meras ilusões. Por quem me tomas? Só porque te chamam Arquimago, julgas-me algum mágico de aldeia? A mim, o único entre todos os magos a descobrir o Caminho da Imortalidade, que nenhum outro alguma vez descobriu?
— Talvez não o tenhamos procurado — contrapôs Gued.
— Procurastes, sim. Todos vós. Procurastes e não conseguistes encontrá-lo, e por isso inventastes essas sábias palavras acerca da aceitação e da harmonia e do equilíbrio entre a vida e a morte. Mas não passavam de palavras, mentiras para encobrir o vosso desaire, para ocultar o vosso medo da morte! Qual o homem que não viveria para sempre, se pudesse? E eu posso. Eu sou imortal. Fiz o que tu não conseguiste fazer e por isso sou teu mestre. E tu bem o sabes. Quererias saber como o consegui, Arquimago?
— Quero.
Cob avançou mais um passo. Arren notou que, embora o homem não tivesse olhos, a sua forma de se movimentar não era a de alguém totalmente cego. Parecia saber exatamente onde Gued e Arren se encontravam e ter consciência da presença de ambos, se bem que nunca voltasse a cabeça para Arren. Devia ter alguma segunda visão por artes de feitiço, tal como aquela capacidade de ouvir e ver que haviam tido os seus envios e representações. Algo que lhe conferia uma percepção, embora talvez não fosse verdadeira visão.
— Eu estava em Paln — relatou ele a Gued —, depois de tu, no teu orgulho, pensares que me tinhas humilhado e ensinado uma lição. Ah, sim, foi uma lição que me ensinaste, mas não aquela que pretendias! E ali disse de mim para mim: «Já vi a morte, e não a aceito. A estúpida natureza que siga o seu estúpido curso. Mas eu sou um homem, melhor que a natureza, acima da natureza. E não seguirei esse caminho, não cessarei de ser eu próprio!» Assim determinado, voltei a estudar a Sabedoria Palniana, mas apenas encontrei alusões veladas e noções superficiais do que buscava. Assim, voltei a tecê-la e a construí-la e fiz um esconjuro, o maior esconjuro alguma vez feito. O maior e o último!
— E, ao fazer esse esconjuro, morreste.
— Sim! Morri. Tive a coragem de morrer, para descobrir o que vós, covardes, nunca conseguistes encontrar, o caminho de regresso da morte. Abri a porta que estivera fechada desde o princípio dos tempos. E agora venho livremente a este lugar e livremente regresso ao mundo dos vivos. Eu só, entre todos os homens e em todo o tempo, sou o Senhor das Duas Terras. E a porta que abri não está aberta apenas aqui, mas também nas mentes dos vivos, nos mais profundos e desconhecidos recessos do seu ser, onde todos somos um na escuridão. Sabem-no e vêm até mim. E os mortos são também obrigados a vir até mim, todos eles, porque não perdi a magia dos vivos. São obrigados a passar o muro de pedras onde eu lhes ordeno, todas as almas, os senhores, os magos, as mulheres orgulhosas. De um lado para o outro, da vida para a morte, à minha ordem. Todos têm de vir até mim, os vivos e os mortos, a mim que morri e vivo!
— E onde vêm eles até ti, Cob? O que é isso onde estás?
— Entre os mundos.
— Mas isso não é vida nem morte. O que é a vida, Cob?
— Poder.
— E o que é o amor?
— Poder — repetiu pesadamente o cego, erguendo os ombros.
— E o que é a luz?
— Escuridão!
— Qual é o teu nome?
— Não tenho nome algum.
— Mas todos neste mundo trazem consigo o seu nome-verdadeiro.
— Diz-me então o teu!
— O meu nome é Gued. E o teu? O cego hesitou e depois pronunciou:
— Cob.
— Esse era o teu nome de usar, não o teu nome. Onde está o teu nome? Onde está a tua verdade? Tê-la-ás deixado em Paln, onde morreste? Foi muito o que esqueceste, ó Senhor das Duas Terras. Esqueceste a luz, e o amor, e o teu nome.
— Mas agora tenho o teu, e poder sobre ti, Gued, o Arquimago. Gued, que era Arquimago quando estava vivo!
— O meu nome de nada te serve — replicou Gued. — Tu não tens poder algum sobre mim. Eu sou um homem vivo. O meu corpo jaz na praia de Selidor, à luz do Sol, sobre a terra girante. E quando esse corpo morrer, estarei aqui. Mas em nome, apenas em nome, em sombra. Pois não compreendes? Nunca compreendeste, tu que tantas sombras chamaste de entre os mortos, que invocaste todas as hostes dos que pereceram, até o meu Senhor Erreth-Akbe, o mais sábio de todos nós? Não compreendeste que ele, mesmo ele, nada mais é que uma sombra e um nome? A sua morte não diminuiu a vida. Nem o diminuiu a ele. Ele está lá, lá, não aqui! Aqui nada existe, apenas pó e sombras. Lá, ele é a terra e a luz do Sol, as folhas das árvores, o vôo da águia. Está vivo. E todos os que alguma vez morreram, vivem. Todos eles renascem e para eles não há fim, nem nunca haverá um fim. Todos, menos tu. Porque tu não aceitaste a morte. Perdeste a morte e perdeste a vida, para te salvares a ti próprio. A ti próprio! Ao teu eu imortal! E isso que é? O que és tu?
— Eu sou eu próprio. O meu corpo não apodrecerá, não morrerá…
— Um corpo vivo sofre dor, Cob. Um corpo vivo envelhece. E morre. A morte é o preço que pagamos pela nossa vida e por tudo o que é vida.
— Eu não o pago! Eu posso morrer e, nesse momento, voltar a viver! Não posso ser morto, sou imortal. Eu e apenas eu sou eu próprio, para sempre!
— Quem és tu, então?
— O Imortal.
— Diz o teu nome.
— O Rei.
— Diz o meu nome. Disse-te qual era ainda nem há um minuto. Diz o meu nome!
— Tu não és real. Tu não tens nome. Só eu existo.
— Tu existes. Sem nome, sem forma. Não consegues ver a luz do dia, não consegues ver o escuro. Vendeste a verde terra e o Sol e as estrelas para te salvares a ti próprio, ao teu eu. Mas não tens eu. Tudo isso que vendeste era esse teu próprio eu. Entregaste tudo por nada. E por isso tentas agora chamar o mundo a ti, toda essa luz e vida que perdeste, para preencher o vácuo que és. Mas não pode ser preenchido. Nem todas as canções da terra, nem todas as estrelas do firmamento, poderiam preencher o teu vazio.
Como ferro percutido ressoou a voz de Gued, naquele frio vale sob as montanhas, e o cego afastou-se dele com temor. Depois ergueu o rosto e a escassa luz brilhou sobre ele. Dir-se-ia que chorava mas, não tendo olhos, não derramava lágrimas. A boca abriu-se e fechou-se, cheia de negrume, mas dela não saíram palavras, apenas um gemido. Por fim disse apenas uma palavra, mal a formando com os seus lábios contorcidos, e a palavra era: «Vida.»
— Eu dar-te-ia vida, se pudesse, Cob. Mas não posso. Estás morto. Mas posso dar-te a morte.