Risco falava com verdadeiro interesse, posta de parte toda a jocosidade, e a atenção de Arren foi finalmente desperta.
— Enlad é uma terra rica e pacífica — disse ele, lentamente. — Nunca se meteu nessas rivalidades. Ouvimos falar de perturbações noutras terras. Mas não se sentou rei algum no trono em Havnor desde a morte de Maharion. Há oito centenas de anos. Será que o território aceitaria realmente um rei?
— Sim, se viesse em paz e em força. Se Roke e Havnor lhe reconhecessem o direito ao trono.
— E há uma profecia a cumprir, não é assim? Maharion disse que o rei seguinte seria um mago.
— O Mestre Chantre é havnoriano e interessa-se pelo assunto. E há já três anos que anda a encher-nos os ouvidos com as palavras que Maharion disse. Herdará o meu trono aquele que tiver atravessado, vivo, a terra da sombra e alcançado as longínquas praias do dia.
— Portanto, um mago.
— Sim, pois só um feiticeiro ou mago pode caminhar entre os mortos na terra da sombra e regressar. Se bem que eles não a atravessem. Pelo menos, sempre falam dela como se tivesse um único limite e, para lá dele, não houvesse fim. O que serão então as longínquas praias do dia? Mas assim reza a profecia do Último Rei e, portanto, alguém nascerá um dia para a cumprir. E Roke reconhecê-lo-á, e a ele se unirão as armadas e os exércitos e as nações. E então haverá de novo majestade no centro do mundo, na Torre dos Reis em Havnor. A alguém assim eu juntar-me-ia. Sim, serviria um verdadeiro rei com todo o meu coração e toda a minha arte.
Assim falou Risco e depois riu e encolheu os ombros, não fosse Arren achar que ele falara com demasiada emoção. Mas Arren olhou-o amigavelmente, ao mesmo tempo que pensava: «Ele sentiria para com o rei o mesmo que eu sinto para com o Arquimago.»
E, em voz alta, disse:
— Um rei precisaria de homens como tu junto de si.
Ali se quedaram ambos, cada um entregue aos seus próprios pensamentos mas, mesmo assim, como companheiros, até que um gongo retiniu na Casa Grande, por detrás deles.
— Pronto! — exclamou Risco. — Sopa de lentilhas e cebolas para esta noite. Vem daí.
— Pareceu-me ouvir-te dizer que não cozinhavam — disse Arren, ainda sonhadoramente, enquanto o seguia.
— Oh, às vezes… por engano…
O jantar nada tinha a ver com magia, mas muito com sustância. Depois de comer, foram dar uma caminhada pelos campos, sob o azul leve do crepúsculo.
— Este é o Cabeço de Roke — informou Risco, quando começaram a subir uma colina arredondada. A erva orvalhada roçava-lhes as pernas e lá de baixo, dos terrenos alagadiços do rio Thwilburn, chegava até eles o coro dos pequenos sapos que acolhiam assim os primeiros calores e as noites estreladas, a tornarem-se já mais pequenas.
Havia um mistério naquele solo. E Risco disse, suavemente:
— Este foi o primeiro monte a elevar-se acima do mar, quando foi pronunciada a Primeira Palavra.
— E será o último a desaparecer, quando todas as coisas forem anuladas — concluiu Arren.
— Portanto, um bom sítio para se estar — disse Risco, a libertar-se da sensação de temor e respeito. Mas logo bradou, atônito: — Repara! O Bosque!
Para sul do Cabeço, revelava-se uma grande luz sobre a terra, como um nascer de Lua, mas esta, delgada, estava já a pôr-se para ocidente, além do cimo do monte. E naquela luz havia um tremeluzir, como o movimento de folhas ao vento.
— Que é aquilo?
— Vem do Bosque… os Mestres devem lá estar. Dizem que se iluminou assim, com um clarão como o do luar, quando eles se reuniram para escolher o Arquimago, há cinco anos. Mas porque se estarão a reunir agora? Será por causa das novas que trouxeste?
— Talvez seja — respondeu Arren.
Risco, excitado e pouco à vontade, quis voltar para a Casa Grande, a ver se ouvia alguma indicação do que poderia pressagiar o Concílio dos Mestres. Arren acompanhou-o, mas olhando muitas vezes para trás, para aquele estranho resplandecer, até que a encosta do monte a ocultou e apenas restaram a lua nova, já a pôr-se, e as estrelas da Primavera.
Mais tarde, sozinho na cela de pedra que lhe servia de quarto de dormir, Arren estava deitado, mas de olhos abertos. Toda a sua vida dormira numa cama, sob peles macias. Mesmo na galera de vinte remos que o trouxera de Enlad, tinham proporcionado ao seu jovem príncipe maior conforto que aquilo — uma enxerga de palha sobre o chão de pedra nu e um cobertor de feltro esfarrapado. Mas não dava por nada disso. «Eis-me no centro do mundo», pensava. «Os Mestres falam entre si no local sagrado. Que irão fazer? Tecerão uma grande magia para salvar a magia? Será verdade que a feitiçaria está a morrer no mundo? Haverá um perigo capaz de ameaçar a própria Roke? Vou ficar aqui. Não voltarei a casa. Preferia varrer o quarto dele que ser um príncipe em Enlad. Será que me vai aceitar como noviço? Mas talvez deixe de haver o ensino da arte mágica e nunca mais se aprendam os nomes-verdadeiros das coisas. O meu pai tem o dom da feitiçaria, mas eu não. Talvez esteja mesmo a desaparecer do mundo. E no entanto eu desejaria ficar perto dele, ainda que perdesse o seu poder e a sua arte. Mesmo se nunca o visse. Mesmo se não voltasse a dizer-me uma palavra que fosse.»
Mas a sua ardente imaginação arrastou-o para mais longe ainda e tanto que, daí a pouco, se via uma vez mais face a face com o Arquimago, de novo no pátio sob a grande sorveira, e o céu estava carregado, a árvore sem folhas, a fonte silenciosa. E ele dizia, «Meu Senhor, a tempestade está sobre nós, mas mesmo assim ficarei contigo e servir-te-ei», e o Arquimago sorriu-lhe… Mas aqui falhou-lhe a imaginação, pois nunca vira aquele escuro rosto sorrir.
De manhã, ao levantar-se, sentiu que ontem fora um rapaz e hoje era um homem. Estava pronto para tudo. Mas, quando o inesperado aconteceu, ficou boquiaberto.
— O Arquimago deseja falar contigo, Príncipe Arren — disse um noviço muito jovem que lhe surgiu à porta e, depois de esperar um momento, deitou a correr dali para fora antes que Arren recuperasse do espanto o suficiente para lhe responder.
Ao acaso, desceu a escada da torre e encaminhou-se pelos corredores de pedra em direção ao Pátio da Fonte, sem saber muito bem para onde devia ir. No corredor, veio ter com ele um homem já de idade, sorrindo de uma forma que lhe desenhava profundos sulcos nas faces, rodeando-lhe a boca do nariz ao queixo. Era o mesmo que, no dia anterior, o acolhera à porta da Casa Grande, quando ele chegara vindo do porto, e lhe exigira que dissesse o seu nome-verdadeiro, antes de entrar.
— Vem por aqui — disse o Mestre Porteiro.
As salas e passagens naquela parte do edifício estavam silenciosas, vazias das Correrias e barulheira dos rapazes que animavam o resto. Ali sentia-se a vetusta idade das paredes. O encantamento com que as antigas pedras tinham sido assentadas era ali palpável. A espaços, havia runas gravadas nas paredes, em sulcos profundos, algumas embutidas de prata. Arren aprendera com o seu pai as Runas de Hardic, mas destas nenhuma conhecia, embora algumas parecerem deter um significado que ele quase sabia, ou soubera e não conseguia recordar bem.
— Ora aqui estamos, rapaz — disse o Porteiro que não dava valor a títulos como Senhor ou Príncipe. Arren seguiu-o até a uma divisão comprida e com um teto baixo travejado, tendo de um lado uma lareira de pedra onde ardia lenha, cujas chamas se refletiam no chão de carvalho, e do outro janelas pontiagudas que deixavam entrar a luminosidade fria e suave do nevoeiro. Em frente da lareira estava um grupo de homens. Todos o olharam quando entrou, mas Arren só teve olhos para um deles, o Arquimago. Então estacou, fez uma reverência e quedou-se emudecido.