Por um instante, Arren permaneceu imóvel. Que loucura, tudo aquilo. Mas ali estava o grande pé com as suas garras colocado como um degrau em frente de si. E mais acima a curva da articulação do cotovelo. E mais acima ainda, a saliência do ombro e a musculatura da asa onde esta surgia da omoplata. Quatro degraus, uma escada. E ali, em frente das asas e do primeiro grande espinho de ferro de todos os que lhe armavam o dorso até à cauda, no cavado do pescoço, havia lugar para um homem se sentar escarranchado. Ou mesmo dois homens, se fossem doidos, tivessem perdido a esperança e se entregassem à loucura.
— Monta! — insistiu Keilessine na língua da Criação.
E assim Arren ergueu-se e ajudou o companheiro a levantar-se. Gued conseguiu manter a cabeça direita e, com os braços de Arren a guiá-lo, trepou aqueles estranhos degraus. Ambos se escarrancharam no cavado do pescoço do dragão, coberto de áspera malha de escamas, com Arren atrás, pronto a amparar Gued se tal fosse necessário. Ambos sentiram um calor penetrá-los, um quente bem-vindo como o quente do sol, saindo dos pontos onde tocavam a pele do dragão. A vida ardia em fogo sob aquela armadura de ferro.
Arren viu que tinham deixado o bordão de teixo do mago caído e meio enterrado na areia e o mar vinha subindo a apoderar-se dele. O rapaz fez menção de descer para o ir apanhar, mas Gued impediu-o, dizendo:
— Deixa-o. Gastei toda a feitiçaria naquela nascente seca, Lebánnen. Já não sou mago algum.
Keilessine voltou a cabeça e olhou-o de esguelha. O velho riso transparecia no seu olhar. Se Keilessine era macho ou fêmea ninguém saberia dizer. O que Keilessine pensava, não havia forma de saber. Lentamente, as asas ergueram-se e desdobraram-se. Não eram douradas como as de Orm Embar mas vermelhas, vermelhas-escuras, escuras como ferrugem ou sangue ou a seda carmesim de Lorbanery. O dragão ergueu as asas cuidadosamente, não fossem elas desalojar os seus diminutos cavaleiros. Cuidadosamente também, apoiou o peso nas molas tensas das suas grandes ancas, saltou como um gato para cima e as asas, com uma vigorosa batida, ergueram-nos acima do nevoeiro que o vento arrastava sobre Selidor.
Como que remando no ar da tarde com aquelas asas carmesim, Keilessine deu a volta sobre o Alto Mar, rumou para leste e voou, voou…
Em pleno Verão, na Ilha de Ully, foi avistado um grande dragão voando baixo, e mais tarde também em Usidero e na parte norte de Ontuego. Se bem que os dragões sejam temidos na Estrema Oeste, onde as gentes os conhecem demasiado bem, depois de este ter passado lá por cima e de os aldeãos terem saído dos seus esconderijos, os que o tinham visto comentaram:
— Nem todos os dragões estão mortos como julgamos. Talvez que os feiticeiros também não tenham morrido todos. E não há dúvida que havia um grande esplendor naquele vôo. Quem sabe, seria o Mais Antigo!
Onde Keilessine tocou em terra ninguém viu. Nessas ilhas longínquas há florestas e montes desabitados, sendo raros os que alguma vez lá passam, e onde até a descida de um dragão pode passar despercebida.
Porém, nas Noventa Ilhas, foi grande o tumulto e a gritaria. Homens remavam furiosamente para oeste por entre as pequenas ilhas, gritando:
— Escondam-se! Escondam-se! O Dragão de Pendor quebrou a sua promessa! O Arquimago pereceu e o Dragão veio para devorar tudo!
Sem descer em terra, sem sequer olhar para baixo, o grande lagarto cor de ferro voou sobre as pequenas ilhas, sobre as pequenas vilas e quintas, sem se dignar soltar sequer um arroto de fogo sobre tão ínfima caça. E assim passou sobre Gueath e sobre Serd, e atravessou os estreitos do Mar Interior e chegou à vista de Roke.
Nunca, na memória do homem, raramente na memória da lenda, dragão algum desafiara as muralhas visíveis e invisíveis da bem defendida ilha. E contudo este não hesitou, antes, voando com as suas poderosas asas, entrou pela costa oeste de Roke, por sobre aldeias e campos, para o verde Cabeço que se ergue acima da Vila de Thwil. Aí, finalmente, inclinou suavemente o vôo para terra, ergueu as asas vermelhas e dobrou-as, indo agachar-se no cume do Cabeço de Roke.
Os rapazes vieram a correr da Casa Grande. Nada nem ninguém os podia ter impedido. Mas, por muito jovens que fossem, revelaram-se mais lentos que os seus Mestres e foi em segundo lugar que chegaram ao Cabeço. E quando lá chegaram ali estava o Configurador, vindo do seu Bosque, o cabelo claro a brilhar ao Sol. Com ele estava o Mestre da Mudança, que regressara duas noites atrás sob a forma de uma grande águia-pesqueira, esgotada e com uma asa ferida. Por muito tempo ficara preso pelos seus esconjuros àquela forma e não conseguiu recuperar a sua enquanto não chegou ao Bosque, na mesma noite em que a Harmonia foi restabelecida e o que estava quebrado voltou a ser um todo. O Mestre da Invocação, emagrecido e frágil, que apenas há um dia deixara o leito, viera também. E ao seu lado via-se o Mestre Porteiro e ali estavam igualmente os outros Mestres da Ilha dos Sages.
Viram os cavaleiros desmontar, um auxiliando o outro. Viram-nos olhar em volta com uma expressão de estranho contentamento, amargura e maravilhado espanto. O dragão manteve-se imóvel como pedra enquanto ambos lhe desciam do dorso até ficarem no chão junto dele. Voltou um pouco a cabeça a ouvir o que lhe dizia o Arquimago e deu-lhe uma resposta breve. Aqueles que o observavam, viram bem como o fitava de esguelha aquele olho amarelo, frio e cheio de riso. Os que lhe compreendiam a linguagem, ouviram-no dizer:
— Trouxe o jovem rei ao seu reino e o velho ao seu lar.
— Um pouco mais longe, Keilessine — replicou Gued. — Ainda não cheguei onde tenho de ir.
Olhou para baixo, para os telhados e torres da Casa Grande sob a luz do Sol e pareceu sorrir um pouco. Depois voltou-se para Arren, alto e delgado nas suas roupas gastas, ainda não completamente firme nas pernas com o cansaço do tão longo vôo e o desnorteamento perante tudo o que tinham passado. A vista de todos os que ali estavam, Gued ajoelhou perante ele, sobre ambos os joelhos, e inclinou a sua cabeça grisalha.
Depois ergueu-se e beijou o jovem na face, dizendo:
— Quando subires ao teu trono em Havnor, meu Senhor e querido companheiro, governa bem e por longo tempo.
Voltou a olhar os Mestres e os jovens feiticeiros e os rapazes e a gente da aldeia que se haviam reunido nas encostas e no sopé do Cabeço. O seu rosto estava calmo e nos seus olhos havia algo de semelhante ao riso nos de Keilessine. Voltando costas a todos eles, trepou-lhe de novo pelo pé e pelo ombro e tomou lugar, sem quaisquer rédeas, entre os grandes picos das asas, no pescoço do dragão. As asas vermelhas ergueram-se com um rufo estralejante e Keilessine, o Mais Antigo, ergueu-se nos ares. Fogo brotou das fauces do dragão de envolta com fumo, e o som do trovão, o vento da tempestade estavam no bater das suas asas. Deu uma única volta sobre a colina e logo tomou rumo para noroeste, em direção a essa zona de Terramar onde se ergue a ilha montanha de Gont.
O Mestre Porteiro, sorrindo, concluiu:
— Está feito o que tinha de fazer. Agora, vai voltar a casa.
E todos se ficaram a olhar o vôo do dragão entre a luz do Sol e o mar, até o perderem de vista.
O Feito de Gued conta como aquele que tinha sido Arquimago veio à coroação do Rei de Todas as Ilhas na Torre da Espada em Havnor, no coração do mundo. Diz o canto que, acabada a cerimônia da coroação e iniciados os festejos, ele deixou a companhia e desceu sozinho até ao porto de Havnor. Ali, sobre a água, encontrava-se um barco, velho e batido pelas tempestades e o tempo de muitos anos. Não tinha a vela erguida e estava vazio. Gued chamou o barco pelo nome, Vê-longe, e o barco veio até ele. Embarcando, Gued voltou as costas à terra e, sem vento nem vela nem remos, o barco moveu-se, levando-o do cais e do porto, para oeste por entre as ilhas, para oeste por sobre o mar. E nunca mais se soube dele.