Descobri também que, se uma mulher tivesse de ser cortejada, eu tinha ao meu dispor o meio perfeito de o fazer. Parecia que não havia nada tão persuasivo como anunciar que estava a tentar aperfeiçoar um novo sabor ou combinação de gelos, que ninguém saboreara até agora, e que precisava da ajuda da dama em questão para provar o meu trabalho e me dar a sua opinião. Havia uma certa habilidade, e prazer também, em fazer condizer o sorvete com a mulher: as mais jovens e inocentes – não que existisse algo como verdadeira inocência naquela corte – podiam ser tentadas com sabores mais sofisticados, enquanto as mulheres mais velhas preferiam a inocência e juventude dos sabores simples.
À medida que me fui tornando mais exímio, tornei-me ainda mais inventivo, tanto nos gelos que fazia para o rei como nos que produzia para as minhas amantes. Continuava a fazer os sorvetes de um só fruto de que o rei tanto gostava, claro. No entanto, depois de ter colhido todos os frutos existentes na Natureza, comecei a criar pomares novos e imaginários e as minhas próprias hortas, onde cresciam extravagâncias como uma árvore que era metade limão, metade lima, ou um arbusto que dava pão de centeio, ou uma planta cujo pólen era as ovas do esturjão da Aquitânia. Até os canteiros de flores trocavam os seus botões por sorvetes de perfumadas folhas de gerânio ou alfazema, ou emprestavam os seus aromas a granites perfumados de erva-cidreira, violeta ou rosa. O facto de estes sabores poderem sequer existir, quanto mais estarem presos nos cristais gelados das minhas eaux glacées, nunca deixava de espantar os convidados do rei: a minha estrela subiu cada vez mais e o meu nome tornou-se conhecido até fora dos limites da corte.
E depois, um dia, levei um prato de gelo de morango aromatizado com pimenta branca ao rei e, embora não me tenha apercebido de imediato, a minha vida mudou completamente.
CARLO
Para fazer um gelo de morango: escolha trinta morangos suculentos com bastante aroma, parta-os e pique-os e passe-os por um coador; adicione uma chávena de açúcar e meio litro de leite de vaca gordo; misture bem e mexa enquanto congela. Não precisa de mais nada, mas pode aromatizá-lo com um pouco de hortelã ou pimenta branca, a gosto.
O Livro dos Gelos
O gelo não ficava sólido e o rei estava à espera.
Apesar do frio na copa subterrânea, eu estava a transpirar. Segurei o balde de madeira entre os joelhos e despejei de novo a mistura de açúcar, natas e morangos esmagados para a sabotiere, o recipiente interior feito de estanho, e comecei a trabalhar novamente com a pá.
Ao meu lado, Audiger estava a ficar aflito.
– Talvez tenhas de mexer mais devagar. Mas despacha-te, despacha-te!
Não me dei ao trabalho de lhe dizer que era difícil fazer ambas as coisas ao mesmo tempo.
– O gelo não está suficientemente frio. Preciso de mais salitre.
– Com certeza que gelo é gelo. Só tem uma temperatura, a temperatura de congelamento. Isso foi determinado por muitas autoridades. Galeno diz…
– Está ali – interrompi. – Duas medidas.
Audiger aproximou-se das arcas onde guardávamos os nossos mantimentos, encheu uma concha de cristais amarelados e trouxe-ma.
– Aqui tens.
Parei de mexer para ele os adicionar à mistura. Cuidadosamente, Audiger despejou o salitre na parte exterior do balde. Enquanto o fazia, um lacaio com a libré real enfiou a cabeça na porta da copa.
– As sobremesas para o rei – pediu.
Audiger virou-se para ele.
– Dois minutos! – exclamou. – Só mais dois minutos! Sua Majestade sugeriu que hoje gostaria de comer um gelo de morango e é um gelo de morango que vai comer. – Por hábito, manteve-se entre o lacaio e os nossos aparelhos, bloqueando a visão do homem.
Entre as pernas, senti o balde – finalmente! – começar a arrefecer enquanto o salitre fazia o seu trabalho. A pá começou a encontrar mais resistência e a mover-se mais devagar. Abrandei também o meu ritmo. Era trabalho duro, esta era a parte mais difícil, no entanto, era tal o meu alívio que senti a dor nos meus ombros diminuir.
Se fores demasiado impaciente, a própria pá pode aquecer a mistura, ouvi a voz de Ahmad dizer na minha cabeça. Presta atenção à tua mão, não aos teus olhos. Quando te parecer que estás a mexer areia, é porque está quase pronto.
– Está pronto – disse. Hoje, não havia tempo para delicadezas. Quando o rei exprimia um desejo súbito por um sabor em particular, até do gelo se esperava que cumprisse as suas ordens.
– Finalmente. – Audiger ajeitou a cabeleira e sacudiu o pó da cave das suas roupas de corte. Enfiou um par de luvas brancas e olhou em volta. – Onde está a bandeja?
Fiz um gesto com a cabeça.
– Na prateleira.
A bandeja era também feita de gelo, feita com um molde e polida até parecer cristal. Já estava coberta de mais gelo moído, à espera.
Inspeccionei pela última vez o conteúdo do meu balde. A mistura estava agora densa e granulosa como mel em bruto. Coágulos e veias de morango esmagado espalhavam-se pelas natas. Enfiei o dedo para provar.
– O que estás a fazer? – gritou Audiger. – Já é pouco para os convidados do rei!
Não respondi. Provava todos os gelos que fazia, mas Audiger não precisava de saber disso. Saboreei, depois acenei.
– Está bom.
Peguei numa colher que fora afiada de um dos lados e coloquei uma colherada de gelo rosa pálido na travessa. Depois acrescentei outra, e outra. Pouco depois o prato parecia um mar gelado, as curvas e rolos de aparas de gelo ajudando a disfarçar o facto de ser, na realidade, muito pouco.
– Vai – disse.
– Um bocadinho de canela? – sugeriu Audiger, ansioso. – Folha de ouro? Noz-moscada?
– Talvez um bocadinho de pimenta branca.
– Pimenta? Nos morangos? Estás maluco?
– Só uma pitada. Confia em mim.
Audiger suspirou.
– Pimenta, então. E açafrão. Sua Majestade Cristã não estará à espera de menos. – Antes que eu pudesse detê-lo, atirou uma mão cheia de fios de açafrão para o prato.
– Gostará ainda mais se souber ao que devia saber – murmurei. Sob o pretexto de o adornar com algumas folhas de hortelã congeladas, consegui sacudir a maior parte do precioso açafrão com as costas da mão. – Vai – repeti, estendendo-lhe o prato.
Audiger subiu os degraus da copa com a bandeja cerimoniosamente estendida à sua frente, as costas direitas como uma vara, como se já estivesse na presença do rei. Segui-o. Lá fora, o sol e o calor da tarde eram como uma pancada, depois da humidade fria da copa. Vi aparecer sobre o gelo de morango uma leve camada de orvalho prateado por causa do ar quente e lembrei-me do sabor – aquela breve amostra na ponta do dedo: açúcar, leite e morangos, concentrados pelo mecanismo do gelo numa pequena flor de sabor.
Sim, pensei. É bom. Um prato digno de um rei.
Era isto que Audiger nunca compreenderia: os gelos não eram simplesmente uma novidade, uma forma de demonstrar o domínio engenhoso do homem sobre a ordem natural das coisas. Eram uma forma completamente nova de combinar sabores e aromas, os quais eram apenas tão bons como as receitas que criássemos para eles.
O lacaio que nos tinha ido chamar estendeu as mãos para a bandeja. Audiger ignorou-o. Por um momento, os olhares de ambos cruzaram-se, depois o lacaio virou-se simplesmente e caminhou à frente de Audiger. Um segundo lacaio seguiu-nos, e outro atrás dele, enquanto um quarto e um quinto abriam sombrinhas elaboradas para proteger o gelo do sol. No comando deste pelotão ia um maître d’hôtel de rosto sulcado e cabeleira, que segurava um comprido bastão de prata como sinal da sua antiguidade. Bateu uma ordem com ele e, juntos, começaram a atravessar os jardins de rosas com passo rápido.