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– O quê?!

– Se eu não estivesse ali – repetiu Audiger –, o rei teria ficado embaraçado em frente do seu convidado inglês. Estou certo de que, só por isso, ele me declarará o vencedor.

– O que lhe vais fazer?

Audiger fez uma expressão desdenhosa.

– Ainda não sei e não te direi quando souber. Algo magnificente. Talvez algo que simbolize o brilho do sol.

Claro, pensei, com um suspiro: o sol. Era a resposta de todos os cortesãos. Pessoalmente, se eu fosse o rei, já estaria farto de caixas de rapé com imagens gravadas do sol, espelhos decorados com sóis, jóias em forma de sol, pinturas embelezadas com o sol, mobílias com sóis… Mas Luís não parecia importar-se. Talvez exista algum valor em ter um símbolo simples associado a um nome, tal como em Florença as três bolas dos Médicis estavam em todos os palácios e igrejas.

– Talvez possas servir-lhe um gelo que já tenha derretido – sugeri. – Sabes, para simbolizar o brilho estonteante e quente do sol de Sua Majestade.

– Um dia – retorquiu Audiger com ar grave –, essa tua língua vai arranjar-te problemas. E desconfio que esse dia chegará mais depressa do que julgas.

Veio a revelar-se que, nesse aspecto, ele estava bem enganado. Não foi a minha língua que me arranjou problemas nesse dia, mas sim os meus olhos, quando pousaram numa certa dama de companhia de cabelo escuro e olhos verdes. Mas não voltei a falar dela a Audiger. Não adiantaria de nada alertá-lo para o meu interesse.

CARLO

É preciso mexer o sorvete com um garfo enquanto gela, para suavizar os cristais e soltar o gelo.

O Livro dos Gelos

Alguns dias mais tarde, dei por mim a caminhar pelo jardim de rosas, imerso em pensamentos. Estava a pensar na competição do rei e no que havia de inventar para ela, mas estava também a pensar no meu futuro.

Parecia que a minha sociedade com Audiger, que há já algum tempo se havia tornado complicada, ia finalmente transformar-se em rivalidade, com a presidência da corporação em jogo. Tinha pena – se Audiger não me tivesse salvado da corte dos Médicis, quem sabe quanto tempo teria lá ficado – mas ninguém pode ser grato para sempre. E, para ser honesto, eu estava chocado por o francês achar que me conseguiria vencer na criação de um gelo. Sempre partira do princípio – não, sempre soubera – que, em relação a esta parte do nosso trabalho, a minha supremacia era evidente.

As palavras de Luís para o inglês tinham indicado que só via necessidade de ter um fazedor de gelados: tinha simplesmente de me certificar de que seria eu. Não havia alternativa. Era imperioso que vencesse essa competição e que Audiger cedesse perante mim.

Havia um sítio para onde ia, às vezes, quando queria estar sozinho, quando queria escapar à maré constante de pessoas na corte: um pequeno bosque de nespereiras onde os ramos baixos formavam uma espécie de banco escondido. Foi para aí que dirigi os meus passos mas, quando lá cheguei, descobri que, afinal de contas, não estava sozinho. Estava uma mulher sentada, a ler, precisamente no lugar onde eu tencionava sentar-me.

Só quando me aproximei mais percebi quem era. Era a rapariga de olhos verdes, a que provara o meu gelo. Fiquei contente: não esperara ter oportunidade de falar com ela tão cedo.

Madame – disse, com uma vénia –, bom-dia.

Mademoiselle – corrigiu-me ela, erguendo brevemente os olhos. – O meu nome é mademoiselle Louise de Keroualle.

– As minhas desculpas, mademoiselle. E eu sou…

– O Grande Demirco, fazedor de gelos – interrompeu ela laconicamente. – Sim, eu sei.

Curvei-me de novo e esperei que dissesse mais qualquer coisa, mas ela já voltara à sua leitura.

– Devia agradecer-lhe, mademoiselle, por ter provado o meu gelo no outro dia – disse, por fim. – Se não o tivesse feito, estou certo de que aquele médico idiota teria persuadido o rei a não o comer.

– Bom, ainda não sofri nenhum ataque – disse ela. Virou outra página. – Embora a sua confecção tivesse de facto alguns efeitos secundários indesejáveis.

– Como assim?

– Apenas o facto de toda a corte não falar de outra coisa senão de gelos desde então. Tem sido praticamente impossível fazer seja o que for. Tive de vir para aqui para fugir de si e ler o meu livro em paz. No entanto, aqui está o senhor, em pessoa.

Tudo isto foi dito em tom muito casual e, por um momento, perguntei-me se a minha presença seria realmente assim tão indesejável para ela. Mas depois lembrei-me da avidez com que devorara o meu gelo de morango e resolvi continuar.

– E o que faz aqui na corte, mademoiselle? Não é geralmente um sítio onde as pessoas leiam livros.

– Se tem mesmo de saber, estou à espera – disse ela, após uma breve pausa.

– De quem?

– Do meu marido.

– E já está à espera há muito tempo?

– Mais ou menos três anos. Sabe, é que não tenho marido.

Ligeiramente confuso com esta contradição, disse:

– Seria de pensar que uma jovem tão bela não teria falta de pretendentes.

Ela não reagiu a este dito espirituoso de nenhuma das duas formas que eu esperava; quer isto dizer que não corou, como eu esperaria que ela fizesse se lhe agradasse o meu interesse; mas também não ergueu o nariz, como poderia fazer para mostrar que não estava receptiva. Em vez disso, limitou-se a suspirar, como se esta fosse uma conversa que já tivera muitas vezes antes.

– Tenciona namoriscar comigo? Por favor, não o faça, signor Demirco. Não lhe disseram? Sou demasiado pobre para ser digna de tais atenções.

– O que quer dizer?

– Apenas que ninguém disse aos meus pais que o preço de um bom marido nos dias que correm é…oh, quase uma dúzia de belos vestidos, uma casa na cidade e uma casa no campo, todas as contas regularizadas com os comerciantes e todas as dívidas de jogo pagas a tempo e horas. – Falou em tom ligeiro mas pareceu-me que havia agora um brilho de fúria nos seus olhos. – Assim, hipotecaram as poucas terras que lhes restavam e compraram à filha mais velha um lugar na corte, na esperança de que a excelência do seu espírito fizesse com que algum cortesão abastado esquecesse a pobreza da sua família, e nem se aperceberam do erro que estavam a cometer.

– Lamento muito.

– Não tenha pena de mim, signor. Seja como for, o meu tempo aqui não foi, de forma alguma, desperdiçado. Enquanto estou à espera, posso ser dama de companhia de madame Henrietta.

Sem ter a certeza de que se tratava de mais ironia, não respondi.

– Oh, Madame é uma pessoa fantástica – disse ela com súbita paixão. – Não é uma dessas belezas da corte afectadas, que se dão por felizes em passar os dias a bordar almofadas e a combinar encontros amorosos. – Fechara o livro, apesar de ter deixado o polegar a marcar a página. Olhei para baixo e tive outra surpresa: não era um romance que ela estava a ler, mas sim Os Princípios da Filosofia de Descartes. – Ela está a trabalhar por um grande prémio diplomático… uma aliança entre o seu irmão, o rei de Inglaterra, e o seu… – Hesitou. – O seu protector, o rei de França. Como pôde testemunhar por si próprio ontem.

Abanei a cabeça.

– Vi apenas alguns cortesãos sem fazer nada, um jogo de paille maille e algumas danças.

– A dança é diplomacia, nesta corte. E atirar poeira para os olhos dos Ingleses, embora seja divertido, nem sempre é tão fácil como Madame faz com que pareça.

– Poeira?

– Perdoe-me – disse ela, de súbito. – Estou a abordar assuntos que não devia. – Levantou-se. – Far-me-ia um grande favor, signor, se esquecesse que alguma vez tivemos esta conversa.