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Acenei.

– Já ouvi falar disso, mas nunca vi nada assim.

– Para quem está agasalhado, ou é rico, ou jovem, é muito bonito – disse ela, com uma expressão distante nos olhos enquanto seguia o movimento rítmico da minha mão sobre o gelo. – Mas para quem é pobre, ou tem frio, ou fome, pode ser aterrorizador. Todos os anos, quando conseguimos voltar a cavar a terra, enterramos dezenas de pessoas mortas pelo tempo mau. A minha família estava melhor do que muitas, claro. Sempre tivemos o suficiente para manter a lareira acesa no salão grande… um lume de lenha, não de carvão do mar. Mas na sala das crianças, nos quartos, não havia aquecimento nenhum. Costumávamos desejar a chegada da neve, porque significava que o tempo estava a ficar mais quente. Quando acordávamos e a grelha estava cheia de neve, vestíamo-nos e corríamos para a rua, para dançar e fazer bonecos de neve. – A expressão dos seus olhos suavizou-se com a memória. – Ou atirar bolas de neve aos irmãos, claro. Mas isso foi antes de eu ser enviada para a corte.

De súbito, tive uma imagem desta jovem orgulhosa a dançar na neve, a rodopiar e a rir, o cabelo escuro enfeitado com grandes flocos brancos que se transformavam em lantejoulas à medida que derretiam.

– Em Florença, raramente nevava – disse-lhe. – Uma ou duas vezes por ano, talvez. – O gelo estava pronto a usar. Hesitei. – Tenho de lhe pedir que se vire. Esta parte do processo é secreta.

Ela ergueu as sobrancelhas.

– Teme que roube os seus métodos e me lance sozinha como confeiteira?

– Claro que não. Mas, infelizmente, não pode haver excepções. O próprio rei insiste nisso.

Ela encolheu os ombros e virou costas. Juntei uma colher de salitre ao gelo e depois peguei numa garrafa de gargalo comprido, uma cantimplora, dentro da qual deitei a água do cordial. Depois empurrei a garrafa para o meio da mistura de gelo e rodei-a, arrefecendo o conteúdo quase até ao ponto de congelar.

– Suponho que o mistério faz parte do espectáculo – comentou ela, para a parede. – Tal como um ilusionista, tem de fazer com que pareça mais difícil do que é na realidade.

Por um momento deixei os olhos pousarem nas costas dela – a curva da sua coluna, as suas ancas, a sua postura; parecia um pouco embaraçada, mais um potro do que um cavalo.

– Pelo contrário. Só protegemos aquilo que é necessário.

Coloquei o resto do gelo dentro de uma taça e servi o cordial gelado sobre ele. Tinha uma bela cor, pensei, enquanto o erguia contra a luz para o admirar: castanho-claro, quase dourado, com o gelo a cintilar nas suas profundezas.

– Já pode virar-se.

Ela assim fez.

– Não há mais? – perguntou.

– Este não é suficiente?

– Ela vai querer saber se o provei.

– Porquê?

– Tem medo de ser envenenada.

– Envenenada!

Mais uma vez, o seu olhar demorou-se no meu rosto, como se estivesse a tentar decidir quanto devia dizer-me. Por fim disse, com ar sério:

– Não se riria se soubesse os riscos que ela corre. O seu próprio marido… – estremeceu. – Bom, não importa. Mas ela vai de certeza perguntar se eu provei isto.

Ainda havia um pouco de cordial na garrafa e despejei-o para outro copo.

Prego – disse, entregando-lho. Ocorreu-me um pensamento súbito. – Foi por isso que comeu o gelo de morango dela? Então não foi para me agradar, nem para embaraçar aquele médico idiota. Estava a certificar-se de que Madame não era envenenada.

Ela engoliu o cordial de um só trago, sem tirar os olhos dos meus.

– Muito bom – disse, devolvendo o copo vazio, e não tive a certeza se estava a referir-se ao cordial ou ao meu raciocínio. Pegou no outro copo e colocou-o numa bandeja.

– E quando disse que era delicioso como o beijo de um amante num dia quente de Verão…

Ela sorriu.

– É o tipo de disparate que a corte gosta de ouvir, não acha?

Resmunguei entre dentes.

– Oh, não fique ofendido – disse ela. – Por acaso, o gelo estava bastante agradável. Ambos temos os nossos segredos, signor. Simplesmente os meus são um pouco mais sérios.

– Como podem os segredos de uma mulher ser sérios! Os segredos de que modista usar ou de quem ganhou a quem no jogo de cartas!

– Estou certa de que tem razão. – Dirigiu-se à porta, segurando o tabuleiro com ambas as mãos, e parou. – E agora vejo que sou um exemplo tão frágil do meu género que nem sequer consigo abrir esta porta pesada sem usar as mãos.

Com um suspiro, aproximei-me e abri-lhe a porta.

– Muito agradecida – disse ela com uma delicadeza trocista. – Já agora, signor, foi um prazer falar consigo. E saiba que eu, ao contrário de certas pessoas, não sou fácil de agradar.

Não podia falar com Audiger. Portanto procurei Olympe.

– Sei que me disseste para não voltar enquanto estivesse interessado nela – disse, entrando no seu apartamento. – Mas preciso dos teus conselhos.

Quando lhe contei o que acontecera, apercebi-me de como parecia ridículo – alguns olhares, uns comentários melindrosos, uma conversa sobre uma luta de bolas de neve com os irmãos. Mas Olympe ouviu-me, assentindo de vez em quando.

– Bom, isso é interessante – disse, quando eu acabei.

– Então achas que ela gosta de mim? – perguntei, ansioso.

– Oh, não estava a falar da tua grande paixão, por mais divertida que seja. Não, referia-me ao namoro de madame Henrietta d’Angleterre com a grande política. Que é de facto, como Louise observou e bem, um assunto muito sério.

– O que queres dizer?

Ela suspirou.

– O teu problema, Carlo, é que pensas que a corte existe apenas para comer os teus gelos. Na verdade, é uma máquina de guerra, a maior da Europa, e um lenço que caia ao chão aqui pode levar à destruição de cidades inteiras em Espanha ou na Flandres.

– Mas o que é que isso tem a ver com Louise de Keroualle?

– O rei quer que os Ingleses sejam seus aliados numa guerra contra a Holanda – disse Olympe, como se estivesse a falar com um idiota. – Os Ingleses, por si só, não têm grande peso, claro, mas o seu país tem uma grande costa e essa tem de ser negada aos nossos inimigos.

– Eu sei. É por isso que o visitante inglês está cá. Para redigir um tratado.

Olympe abanou a cabeça.

– O verdadeiro tratado foi assinado em segredo há três semanas.

– Não compreendo. Como?

– Quando madame Henrietta foi visitar Carlos a Dover, para celebrar o aniversário dele, levou consigo um tratado redigido por ela e assinado por Luís… que, por acaso, é também seu amante – explicou. – Será que ele a seduziu apenas para assegurar a sua ajuda? – O encolher de ombros de Olympe sugeria que era bem possível. – Seja como for, o tratado diz que Carlos comprometerá a Inglaterra na guerra contra os Holandeses, em troca de uma pensão de Luís… uma pensão tão generosa que Carlos já não terá de dobrar o joelho perante o parlamento inglês que o restaurou no seu cargo.

– Mas isso não é propriamente absurdo, pois não? Um parlamento não deve ter o direito de interferir nos assuntos de um rei.

– Claro. Mas ouvi dizer que o tratado obriga também Carlos a converter-se ao catolicismo. E, se o rei inglês for católico, o seu país também tem de o ser. Na prática, é um tratado que, caso fosse conhecido, comprometeria Carlos a um conflito com o seu próprio povo. Daí a necessidade de redigir outra versão, mais adequada ao consumo público, sem qualquer referência a pensões ou religião.

– Então o duque inglês…

– Está aqui, para grande divertimento de Luís, para negociar condições que, na realidade, já foram decididas. Claro que ele não pode ter a mínima suspeita de tal coisa… tem de acreditar que, graças ao seu charme e capacidades de negociação, conseguiu garantir exactamente aquilo que lhe disseram para esperar. Levará o traité simulé para Inglaterra; o parlamento ratificá-lo-á e ninguém saberá de mais nada. Era isso que Louise queria dizer quando deixou escapar aquela observação sobre atirar poeira aos olhos dos Ingleses.