– Signor Demirco… vem ou não? – desafiou ela. – Não posso entrar numa luta de bolas de neve sozinha.
Segui-a. A deslocação de ar quando entrei na segunda copa fez a neve ondular à minha volta, cintilando sob a luz de uma vela.
Ela virou-se, com as mãos já carregadas, e arremessou outra bola de neve, mas fê-lo cedo de mais e a bola desintegrou-se, inofensiva, no meu casaco. Depois – não consegui evitar – dei dois passos e tomei-a nos braços; e os seus lábios – os seus lábios frescos e pálidos – sabiam a água de rosas e açúcar, salpicados com flocos de gelo como se fosse um pólen suave e perfumado.
Por um longo momento beijei-a e ela retribuiu o beijo – tinha a certeza disso – com a boca quente contra a minha. E depois, com um arquejo repentino, afastou-se de mim com expressão horrorizada.
– O que está a fazer? – gritou.
– Espere – disse. – Louise, deixe-me explicar. Quero…
Mas ela já desaparecera. Senti o ar quente entrar pela porta aberta, como água do mar a deslizar sobre um banco de areia, e vi a neve a derreter à minha volta, como ouro dos tolos.
Tentei escrever-lhe uma carta mas a folha de papel era um campo de neve pura que eu apenas arruinei ao cobri-lo com as marcas da minha pena. Assim, em vez disso, mandei-lhe o boneco de neve, numa bandeja transportada por dois lacaios, dirigida a Louise de Keroualle no apartamento de madame Henrietta, duquesa de Orleães.
Foi-me devolvido uma hora depois, meio derretido devido à viagem pelo palácio.
Fui vê-la, mas não me foi permitida a entrada. Assim, esperei no jardim, perto do pomar de nespereiras, na esperança de um vislumbre.
Por fim vi-a a dirigir-se ao pomar. Tinha algo nas mãos – um xaile, ao que parecia.
– Louise! – chamei.
Por um momento ela virou a cabeça e pareceu-me que hesitava, mas depois apressou o passo e continuou a andar. Perdi-a de vista atrás de uma sebe e corri para a apanhar. Os jardins nesta parte de Versalhes eram como um labirinto; uma série de pátios e relvados interligados, todos escondidos uns dos outros. Ela não estava no jardim seguinte mas, através de uma abertura na sebe, vi uma ponta do seu vestido.
Por fim, quando contornei uma fonte, vi-a.
– Louise! – chamei de novo, mas percebi então que ela estava a juntar-se a um pequeno grupo. Entre as pessoas ali reunidas estava a sua senhora, madame Henrietta, sentada num banco de pedra. Mesmo a esta distância, vi como ela parecia frágil e curvada. Ao seu lado estava o rei, bem como Buckingham e dois dos ministros do rei.
– A sério, não é nada – disse Madame em voz fraca quando Louise lhe pôs o xaile sobre os ombros. – Apenas uma tontura, Vossa Majestade.
– O ar está fresco – disse Buckingham. – Talvez prefira que nos retiremos para o interior?
O rei vira-me.
– Signor Demirco. Quem procura?
Apercebi-me de que estava parado a olhar para eles como um idiota.
– Vossa Majestade… quer dizer, pensei que talvez madame la comptesse gostasse de um cordial. Sei que toma chicória gelada, por vezes, para a digestão.
Luís lançou um olhar interrogativo a Madame.
– Talvez mais tarde – disse ela debilmente. – Pode enviá-lo para os meus aposentos.
– Signor Demirco? – chamou o rei enquanto eu me retirava.
– Vossa Majestade?
– Como vai o gelo para o rei inglês? Estamos à espera de algo maravilhoso, como sabe.
Curvei-me de novo.
– Ainda não pensei em nada adequado, senhor.
Uma expressão levemente surpreendida surgiu no rosto do rei.
– Bom, não espere demasiado tempo.
Virou-se para os outros e, enquanto me afastava, com as orelhas a arder, apanhei as palavras:
– Italiano… não é de fiar… mas muito inventivo: verá, milord duque, verá.
Esperei até os ver regressar ao palácio. O rei ia a apontar para os lados, sem dúvida a explicar ao inglês os seus planos para alargar ainda mais os magníficos jardins. Louise caminhava um pouco mais atrás. Aproveitando a oportunidade, aproximei-me dela.
– Preciso de falar consigo.
Ela desviou os olhos para o rei.
– Não acha que já o ofendeu o suficiente por um dia?
Olhei para o rei, que traçava com a mão fontes imaginárias no ar.
– Disse-lhe apenas que ainda não tinha feito o gelo. Como é que isso é ofensivo?
– Deu a entender, em frente de um visitante estrangeiro, que andar atrás de uma dama de companhia assume precedência sobre uma ordem real. Pode ser uma ofensa ligeira, mas garanto-lhe que ele não a esquecerá… se assim o entender.
– Não andava atrás de si.
– Fico contente por saber disso. Obviamente devia ter outro motivo urgente para correr na minha direcção.
– Vim dizer-lhe que a amo.
Ela estacou abruptamente. Depois, de rosto tenso, recomeçou a andar na direcção do palácio.
– Não faça pouco de mim.
– Louise, não estou a brincar. Os meus sentimentos são totalmente genuínos.
– Então a Olympe de Soissons expulsou-o da sua cama? – Viu a minha expressão de surpresa. – Oh, julgava que ninguém sabia disso? Estamos na corte, signor. Os segredos são tudo o que as pessoas têm para falar.
Fiz um gesto.
– Ela não significa nada para mim. Uma diversão, apenas isso.
– Enquanto eu, claro, seria muito mais. – Disse-o em tom sardónico mas abrandou um pouco o passo. – Por favor, compreenda: não pretendo ser indelicada em relação aos seus sentimentos. Porém, quando vim para a corte, cometi um erro idiota. Deixei que o meu nome fosse associado ao de um homem… um homem de nascimento nobre, na realidade, mas que esteve envolvido em alguns escândalos. Ninguém o criticou a ele por isso, claro; mas viram-me com ele e presumiram que eu estava a comportar-me como essas outras mulheres e a minha reputação ficou manchada. Se não fosse Madame, teria caído em desgraça e ver-me-ia forçada a deixar a corte. Não voltarei a cometer o mesmo erro.
– Nem eu o desejaria. Pretendo casar consigo, Louise.
Ela parou de novo, de olhos muito abertos.
– Tenho o favor do rei; a minha posição está segura – prossegui rapidamente. – E tê-la ao meu lado seria uma vantagem para mim: compreende os meandros da corte… – Calei-me, silenciado pela expressão nos olhos dela.
– O quê? – perguntou, incrédula.
– Quero casar consigo – repeti.
Por um momento, ela fitou-me como se estivesse louco.
– Eu sou Louise Renee de Penacöet, dama de Keroualle, a filha mais velha da família mais antiga da Bretanha – disse, em tom lento e deliberado. – A nossa linhagem remonta às Cruzadas.
– E então? Disse-me que os seus pais a tinham enviado para a corte para arranjar um marido…
– Mandaram-me para a corte para arranjar um duque. Ou, no mínimo, o irmão mais novo de um duque. – Abanou a cabeça, como se não quisesse acreditar que isto estava a acontecer. – Por favor, compreenda uma coisa, signor: não tenho nada contra si, pessoalmente. Se fosse de família nobre, estou certa de que o meu pai fecharia os olhos ao facto de o senhor ser um libertino italiano frívolo e hedonista, que não tem actividade mais digna para passar o tempo do que produzir guloseimas para cortesãos glutões… quando não está a seduzir damas de companhia, claro está. Mas, a menos que seja um Médicis ou um Mazarin, receio que dificilmente ele terá uma visão tão condescendente.
Agora furioso, disse-lhe:
– Não sei quem eram os meus pais. Apenas que eram pobres e me deixaram para traçar o meu próprio caminho neste mundo.
Ela suspirou e pareceu-me que falava em tom um pouco menos mordaz.
– Bom, lamento muito. Mas sabe, ter liberdade de traçar o seu próprio caminho pode ser uma bênção.