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Depois de o corpo dela ser levado, Luís, de olhos sombrios, chamou-me aos seus aposentos privados.

– Foi veneno? – quis saber.

– Vossa Majestade, creio que não. Eu própria bebi do copo de água de chicória dela, depois, e não sofri quaisquer efeitos nocivos.

– Bom, talvez os médicos possam dizer-nos mais amanhã. – Suspirou. – Obrigado, Louise.

Apesar do que eu dissera, os rumores recusaram-se a desaparecer. Era do conhecimento comum que Madame temia ser envenenada e que estava em conflito com o marido. Aqueles que sabiam que ela estivera envolvida em trabalho diplomático contra os Holandeses estavam ainda mais inclinados para acreditar em crime.

Pela minha parte, a morte dela deixou-me devastada. Não só perdera a mulher que idolatrava – a pessoa mais bondosa, inteligente e doce do mundo – como perdera também a minha patroa, a minha protectora e o meu lugar na corte. O projecto para o qual tanto trabalháramos estava também arruinado, pois os rumores rapidamente chegaram à corte inglesa: as notícias da dor terrível de Carlos e das suas próprias suspeitas chegaram até nós pelos mesmos meios. Também não ajudou nada quando o abade Bossuet, que pregou na sua cerimónia fúnebre, disse que ela fora «assassinada».

CARLO

Para fazer um sorvete de pêras: use doze pêras, descascadas e partidas, tão maduras que as fatias escorreguem nas suas mãos. Faça uma polpa e passe-a por um coador fino; ferva em lume brando com o sumo de um limão e uma chávena de açúcar, depois congele, mexendo da forma habitual. Se adicionar crème anglaise, terá um gelo de creme em vez de um sorbetto.

O Livro dos Gelos

Depois do episódio com Louise, isolei-me durante uns dias. Por algum motivo, sentia-me um pouco consumido por aquele marasmo obstinado da alma a que os médicos chamam melancolia.

Passei esse tempo atarefado com a incumbência, há muito adiada, de fazer um gelo para o visitante inglês. Eu negligenciara este processo de forma escandalosa. Dizia-se que a delegação inglesa partiria dentro de uma semana: o rei podia exigir que o concurso fosse julgado a qualquer momento.

Desinteressadamente, comecei a reunir ingredientes. O que era preciso? Algo extravagante, claro; algo que demonstrasse o meu domínio da arte e o esplendor da corte francesa.

Os corredores de Versalhes estavam decorados com pinturas elaboradas: cada candelabro era sustentado por querubins dourados. Comecei a esculpir um querubim de gelo, com uma travessa congelada na mão onde colocaria – o quê? Uma cornucópia, talvez, a derramar frutos. No meu tempo na corte já fizera moldes de madeira que me permitiam construir gelos em forma de cerejas, pêras e maçãs. Agora adicionei uma meloa, um pêssego perfeitamente cor-de-rosa e um cacho de uvas douradas e translúcidas, salpicadas com açúcar de confeiteiro em pó para representar o pólen fino e pálido da vinha. Decorei tudo com folhas de parra feitas de biscoito e açúcar trabalhado.

Quando terminei, olhei para o meu trabalho e odiei-o.

Era magnificente e não significava nada – uma travessa de pompa inútil, um exemplo perfeito de exibição oca e grandiloquência que eu seria capaz de ter feito de olhos fechados. Até Audiger conseguiria fazê-lo.

Ouvi a voz de Louise de Keroualle na cabeça. Um libertino frívolo e hedonista, que não tem actividade mais digna para passar o tempo do que produzir guloseimas para cortesãos glutões…

Não era verdade, e ia prová-lo.

Peguei no querubim e na sua bandeja e arremessei-os ao chão. O gelo despedaçou-se em volta dos meus pés; frutos de imitação rebolaram até aos extremos mais distantes da copa. Pisei com as botas aqueles que estavam ao meu alcance, esmagando-os, e pontapeei os pedaços. Depois comecei a andar de um lado para o outro.

Passei um dia e uma noite inteiros a pensar, a pegar em ingredientes apenas para os arrumar de novo. Sabia aquilo que não queria fazer: quanto ao que queria fazer, era mais complicado.

Olhei para os meus blocos de gelo. Como são belos. Não, pensei: não são belos, são implacáveis. Não perdoam nada.

Qual era o gelo mais simples, mais ridiculamente básico que podia fazer para agradar ao rei?

Pêras. Luís adorava pêras.

Portanto – faria um gelo de pêra. Mas seria o melhor gelo de pêra que alguma vez fora feito, por mim ou por qualquer outra pessoa.

Usei apenas Rousselet de Reims, a variedade preferida do rei, perfeitamente amadurecidas esse mês. Primeiro assei-as com um pouco de tomilho e vinho doce, muito suavemente, para adoçar a polpa. Depois fi-las em puré, juntamente com raspa de um limão e uma pequena dose de agraço.

Juntei também algum sal. Sal, limão, agraço – eram elementos que não se notariam no gelo terminado, mas que eu sabia que intensificariam o sabor das pêras quando explodisse da colher para a boca. Tinha o meu sorvete – pelo menos, os princípios.

Depois, num momento de inspiração, acrescentei um pouco de crème anglaise.

Inicialmente, estava a pensar apenas em como este o tornaria mais inglês, claro. No entanto, assim que o provei, percebi que a riqueza suave e quente do creme, salpicado com sementinhas de baunilha preta, era o acompanhamento perfeito para a acidez perfumada da fruta.

Recuei, estupefacto. Vi imediatamente o que fizera: criara uma combination, uma aliança de sabores, em que o todo era maior do que a soma das partes. Juntos, a pêra francesa e o creme inglês eram um prato, melhor do que qualquer uma das coisas por si só. Congelados juntos, numa espécie de gelo de creme, simbolizariam a relação especial entre os dois países, unidos num todo indivisível. E – o melhor de tudo – era simples; tão simples que até um idiota como eu não poderia deixar de perceber a mensagem.

Impaciente, esperei que a mistura congelasse, mexendo-a de meia em meia hora, como de costume. De cada vez que tirava a tampa da sabotiere e rodava a pá à volta do balde de estanho, reparava como eram finos e claros os flocos de gelo. E a sensação era diferente, também. Em vez da sensação granulosa e arenosa de gelo esmagado, havia apenas uma firmeza suave e luxuriante, como se estivesse a mexer uma pasta rica e pesada.

Por fim, ficou pronto. Na minha impaciência, nem sequer o pus numa taça e provei-o directamente do balde.

Era extraordinário. Não só o sabor, mas a textura. De alguma forma, eu conseguira fazer um gelo tão espesso, tão cremoso e suave que era como se um macaroon se dissolvesse na minha boca. Não tinha grânulos de gelo, nenhuma aspereza: apenas a viscosidade oleosa e suave do creme a cobrir-me a língua enquanto derretia, deixando para trás a acidez doce da pêra e a riqueza quente do crème anglaise.

Finalmente, fizera um gelo como o qual Ahmad podia apenas sonhar.

A única coisa que me estava a confundir era não ter percebido, de imediato, o que fizera para tornar este gelo tão diferente. Não importava: podia estudar esse assunto mais tarde. Para já, queria apenas testar o meu gelo em alguém. Precisava de um cenário digno, claro: tinha estado a guardar uma preciosa taça de vidro veneziano, com centelhas douradas embebidas no vidro, precisamente para uma ocasião destas. Estendi a mão para lhe pegar – mas depois hesitei. Mais uma vez, a chave para tornar este gelo especial era a simplicidade, não a extravagância.

Fiz duas pequenas coroas reais, de biscoito, e enchi-as com o meu gelo cremoso de pêra e crème anglaise.