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Lembrei-me das palavras de outro dos que me tinham transmitido instruções, um espião menor a quem Lionne me passara depois de estar despachado comigo. Claro que foram castigados pelas suas heresias: castigados por Deus, com guerra civil, peste e fogo. Talvez já tenham aprendido a sua lição. O homem agitara a mão com indiferença. Oh, vai achá-los bastante trabalhadores… acreditam em trabalho duro, estes protestantes, quase religiosamente, poder-se-ia mesmo dizer, embora ainda esteja para se ver que glória pode alguma vez advir, para Deus ou seja para quem for, da reconstrução daquela poça de lama infestada de peste…

Infestada de peste. Eu não tinha medo do fogo, mas a famosa pestilência de Londres era outra coisa. Benzi-me automaticamente e depois desejei não o ter feito. O meu companheiro olhou para o meu peito, seguindo o meu gesto, e, embora não tenha dito nada, ficou subitamente pensativo. Oh, enfim: dificilmente poderia ser segredo que um italiano, vindo de França, seria católico. Ou talvez o homem tivesse reparado na falta do meu dedo. No entanto, pareceu-me que daí para a frente me observou com mais desconfiança.

A Grande Ponte estava agora à nossa frente. Feita de pedra e coberta de construções, era maior do que qualquer ponte em Paris ou Florença. O rio, limitado de ambos os lados por rodas de moinho gigantescas, jorrava pelo arco central como por um cano gigante e, embora alguns botes vindos de montante navegassem descontraidamente os rápidos, acompanhados pelos gritos dos seus passageiros, era obviamente impossível o nosso barco avançar mais.

Enquanto a tripulação o prendia a um pontão próximo, o meu companheiro deu-me uma cotovelada e apontou para cima.

– Está a ver aquilo?

Numa das extremidades da ponte, uma casa de necessidades projectava-se sobre a água. Semicerrando os olhos para ver através da chuva, vi uma fila de meia dúzia de assentos de retrete de madeira nos quais se encontravam, como ovos num suporte, um par de nádegas masculinas e dois pares de nádegas femininas. Mas não era a essa exibição indecente que o homem se referia. Por cima de um dos arcos havia uma fila de espigões de ferro, encimados com o que pareciam ser couves podres. Apenas algumas madeixas de cabelo e um leve brilho de dentes brancos numa delas mostravam que não eram, decididamente, couves.

– Papistas – disse o homem em tom contundente.

Bom, talvez fosse verdade, embora me tivessem dito em Paris que uma das cabeças em exibição era a do próprio Cromwell, o Grande Usurpador, decepada pós-morte do corpo desenterrado. Os outros, pensei, não deviam ter tido tanta sorte. Talvez em consequência dos recentes problemas, a pena para traição ou heresia aqui em Inglaterra era muito pior do que a mera execução. Conseguia imaginar demasiado bem – não a dor, pois essa seria literalmente inimaginável, mas o horror: ver as nossas próprias entranhas serem-nos arrancadas da barriga como sedas da bolsa de um saltimbanco, depois casualmente queimadas perante os nossos olhos, com a chuva a crepitar e a fumegar ao cair sobre elas, a nossa última refeição a derramar-se e a ser novamente cozinhada enquanto os intestinos se rompiam sobre a braseira. E isso antes de começarem a serrar-nos aos pedaços…

Desta vez consegui conter-me para não me benzer, embora a minha mão direita tenha estremecido involuntariamente. O meu companheiro reparou e riu-se. No entanto, percebi que não era um riso maldoso: depois de me ter causado este desconforto, estava a rir para mostrar que fora uma brincadeira. Eu tinha sido avisado do estranho sentido de humor dos Ingleses.

– Para onde vai, amigo? – perguntou o homem, dando-me uma palmada no ombro enquanto subíamos a estreita prancha de desembarque.

– Ficarei alojado em Vauxhall e tenho de me apresentar na corte.

– Na corte, hã? – disse ele, claramente impressionado. – Já tinha pensado se seria isso. Temos cá alguns como você. – Acenou. – Nes­se caso, podemos partilhar o transporte. Eu também vou para Vauxhall.

– Obrigado – respondi, educadamente. – Mas tenho de esperar pela minha bagagem. – Estávamos agora em terra seca e eu sentia as pernas um bocadinho bambas depois da travessia. Não que fosse muito seca, esta terra: o barro peganhento, da cor dos dejectos, misturava-se com a chuva para criar uma porcaria gordurenta debaixo dos nossos pés.

– Não faz mal. Eu espero consigo. A chuva é capaz de abrandar.

Só uns bons vinte minutos depois trouxeram as minhas arcas do porão. Quando a última foi colocada no cais, o homem tocou-me no braço.

– Tem de os fazer pagar por isso. Estes imbecis ensoparam a sua bagagem.

– Não tem importância – respondi, rapidamente.

– Não tem importância? Olhe para isto! – Era verdade: a água escorria de um dos cantos da arca. – Devia verificar o conteúdo – insistiu o homem. Chamou um carregador. – Tu aí! Abre esta arca.

– A sério, não há problema. Além disso, está fechada à chave.

– Porquê? O que é que tem lá dentro, que tem de estar fechado à chave mas não se estraga com a água? – inquiriu. A sua franqueza era enervante, quase ofensiva. No entanto, como eu estava a aprender rapidamente, essa era outra das características deste povo.

Hesitei.

– Contém os meus instrumentos de trabalho. Mas são quase todos feitos de estanho, portanto um pouco de água não é motivo de preocupação. – Paguei um dinheiro aos marinheiros para levarem as arcas até à estrada. – Agora tenho de encontrar uma carroça.

Mais uma vez, vi o homem – o soldado, como estava agora quase certo de que era – olhar para mim com curiosidade. Talvez estivesse a perguntar a si próprio como é que um estrangeiro sabia que uma carroça seria mais rápida do que um barco. Contudo, as minhas ordens eram para estar o mínimo de tempo possível na ponte.

Carregámos as arcas numa carroça e partimos. Onde o incêndio não chegara, as ruas eram estreitas, quase demasiado estreitas para a carroça passar entre os edifícios. Cada andar era maior do que o inferior, e o pouco espaço que existia ao nível do solo já desaparecera no terceiro ou quarto piso, quase transformando as ruas em túneis. Agora, dei graças pela chuva; pelo menos matinha os dejectos, tanto dos cavalos como humanos, a correrem pela sarjeta no meio de cada rua – isto, claro, onde ela não se encontrava bloqueada. Tirei um lenço da manga, salpiquei-o com umas gotas de água de rosas e levei-o ao nariz. Vi o meu companheiro sorrir, mas ele não disse nada.

Enquanto avançávamos lentamente pelas ruas, passámos por vários grupos de homens vestidos com roupas escuras que, quando se cumprimentavam, pegavam na mão uns dos outros e a seguravam entre as suas. Era como se estivessem a trocar um sinal secreto, no entanto estava a ser feito abertamente, em público.

– Chama-se apertar a mão – disse o meu companheiro, quando me viu virar a cabeça para olhar. – É o costume entre os dissidentes mais convictos, quando se encontram. Recusam-se a curvar-se perante qualquer homem, uma vez que dizem que todos fomos criados iguais.

– Em França, isso seria considerado conversa sediciosa.

– Aqui é diferente. A república veio abalar tudo. As coisas voltarão ao que eram, mas vai demorar algum tempo. – De súbito, o homem parecia divertido. – Houve um dissidente que se recusou a tirar o chapéu perante o rei. Sabe o que aconteceu? – Abanei a ca­beça e ele continuou: – Sua Majestade tirou o seu próprio chapéu.

– Porquê?

– Como ele disse ao dissidente, o costume ditava que um dos dois estivesse de cabeça nua, portanto assim o costume estava cumprido. O bom do velho Rowley…

– Rowley?

– Oh, é o nome do garanhão do rei, mas também o que as pessoas chamam ao próprio rei.