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– Porquê?

– É um nome afectuoso. Uma alcunha. – Riu-se. – Suponho que é por ele ser parecido com o cavalo, percebe, pelo menos em certos aspectos.

Eu estava perplexo. Então, homens que tinham morrido na sua cama eram desenterrados e decapitados, mas comentários grosseiros e traiçoeiros sobre o rei eram fonte de diversão. E o próprio rei, ao que parecia, era obrigado a ignorar uma impertinência que, em França ou Itália, enviaria um homem para o cadafalso.

Um país bárbaro e atrasado, concluíra o espião de Lionne com um encolher de ombros. Literalmente: nem sequer conseguem reger-se pelo mesmo calendário do resto da Cristandade. E apesar de no seu calendário, como virá a descobrir, estarem apenas dez dias atrasados em relação a nós, em todos os outros aspectos parecer-lhe-á antes décadas.

Finalmente, livrei-me do meu companheiro na estalagem onde estava instalado. Os olhos do inglês seguiram a última arca en­quanto era levada para dentro, ainda a pingar, mas não disse nada excepto um «Adeus» breve antes de acenar com a cabeça e seguir o seu caminho. Eu vinha a compor mentalmente um discurso de agradecimento pela sua ajuda, elaborado mas pouco sincero, como a cortesia exigia; mais uma vez, fiquei sem perceber se esta brusquidão era um insulto ou simplesmente outro costume estranho.

No entanto, os meus aposentos eram adequados, as paredes cobertas com painéis de madeira que não pareciam esconder quaisquer orifícios de espionagem. Tranquilizado, virei a minha atenção para os baús. Aquele que vinha a pingar estava frio ao toque – mau sinal. Tirei as mantas da cama e enrolei-o o melhor que pude. Não me atrevi a abri-lo – o quarto estava quente e só ia piorar o problema. Virei-me para o outro baú, abri-o e recuei um passo, consternado.

Quando o selara, continha cristais amarelados. Agora vi apenas um monte de pó coagulado. Toquei-lhe com o dedo. Húmido. O outro baú, o que estava a pingar, devia ter ficado por cima deste no porão do barco. Não fazia ideia se o salitre podia ser seco e os cristais extraídos novamente: desconfiava que não.

Bom, não devia ser um problema irresolúvel. Presumivelmente, em Londres, tal como em Paris e Florença, devia haver homens dos despejos que recolhiam o conteúdo dos bacios das pessoas todas as manhãs para extrair o precioso salitre. Vira um boticário um pouco mais abaixo, na rua da estalagem: lá deviam saber onde é que eu podia adquirir mais. Lavei-me com água quente trazida pelo criado, desci e disse ao estalajadeiro que ia sair.

Enquanto caminhava na direcção da loja, um grupo de homens ainda jovens chamou-me a atenção. Caminhavam altivamente pela rua lado a lado, uma formação que, a juntar ao facto de cambalearem de um lado para o outro, significava que ocupavam a maioria do espaço disponível. Em contraste com os outros que vira nas ruas, estes homens estavam vestidos de uma forma que teria parecido ostentosa até em França, com calções folgados, ornamentados com metros de renda e descaídos nas ancas, abafos no cinto da espada, camisas de linho que ondulavam por baixo de gibões elegantes, mais linho a espreitar das braguilhas abertas e coletes pespontados a fio de ouro e prata. Estavam obviamente embriagados: um deles pôs o braço sobre os ombros do outro, mas a acção desequilibrou-os a ambos e fê-los cambalear de encontro a uma parede.

Ao mesmo tempo, apareceu atrás deles uma cadeirinha, transportada pela lama por dois criados, evidentemente de uma pessoa de posição elevada. Quem quer que fosse, estava com pressa, e a cadeira rapidamente ultrapassou o grupo de jovens janotas, os criados passando simplesmente entre eles sem olhar para a esquerda ou para a direita. Depois um dos jovens soltou um rugido – parecia «Hipopótamo!» – e os companheiros responderam com gritos. Como um só, correram sobre a cadeirinha e viraram-na, fazendo a pessoa dentro dela cair desamparada na lama. Era, como eu calculara, um cavalheiro de meia-idade, bastante gordo, e o seu grito de ultraje enquanto rebolava sobre a lama e imundície teria, estou certo disso, sido consideravelmente mais alto se a queda não o tivesse deixado sem fôlego; por seu lado, os jovens estavam a rir tanto que quase não se tinham de pé.

– Imbecis – balbuciou o homem, ainda deitado de costas; instantaneamente, um dos jovens desembainhou a espada e aproximou-se dele com ar ameaçador.

– Sim? – provocou. – É insolência aquilo que oiço?

Fiquei surpreendido com isto, tanto porque tinham sido obviamente os jovens quem agira mal, como por não fazerem qualquer esforço para se dirigirem ao homem mais velho que, como já disse, era uma pessoa de ar respeitável, com a delicadeza devida a alguém da sua posição. E fiquei ainda mais surpreendido pela reacção do homem mais velho. Apanhou a cabeleira da lama e disse em tom humilde:

– As minhas desculpas, Vossa Graça. Falei no calor do momento.

O libertino que desembainhara a espada deu vários golpes no ar, como se estivesse desapontado por o outro homem não lhe dar motivos para discutir mais. Depois virou-se, embainhou a espada e cambaleou atrás dos seus amigos.

Que país curioso, pensei, enquanto via o homem subir novamente para a cadeirinha sob o olhar impassível dos criados. Era como se ninguém soubesse qual era a sua posição – ou talvez, no rescaldo de uma guerra civil, o soubessem demasiado bem. Como forasteiro, era evidente que teria de ter muito cuidado.

Entrei na loja e fechei a porta atrás de mim.

– Sim? Posso ajudar? – disse o boticário, erguendo os olhos da balança onde estava a pesar um pedaço de âmbar cinzento.

– Queria comprar salitre. Mais ou menos um quilo.

O homem pestanejou.

– Não é coisa que tenhamos em tanta quantidade. Posso perguntar no arsenal em Woolwich, se quiser. Mas será caro.

– Compreendo. Mas tenho mesmo de o adquirir. Estarei instalado no Red Lion, pode mandar recado para lá. – Dirigi-me de novo à porta. Os jovens pareciam ter desaparecido, por isso saí. No outro extremo da rua havia um mercado. Não tinha mais nada para fazer, e pensei que podia ir ver que frutas estavam na época aqui, se é que havia alguma.

Só regressei à estalagem mais de uma hora depois. O mercado, na verdade, fora uma agradável surpresa. Apesar do adiantado do mês, havia uma abundância de pequenos damascos doces, amêndoas e pistácios da Turquia, bem como umas avelãs grandes e gordas que eu nunca vira antes. Havia também uma boa variedade de queijos, e tantas especiarias e ervas que nem eu as reconheci a todas. Os Ingleses, ao que parecia, compensavam em perícia comercial aquilo que lhes faltava em recursos naturais.

Pareceu-me haver um número surpreendente de pessoas na estalagem quando entrei, com um cesto de ameixas debaixo do braço. Algumas estavam a olhar para mim daquela forma directa dos Ingleses, mas havia também algo mais, uma certa dissimulação nos seus olhos. Sentindo-me um pouco desconfortável, dirigi-me às escadas.

– É ele!

De súbito, um grupo de homens desceu as escadas ao meu encontro, de armas na mão. Quando dei por mim, tinha pontas de espada e canos de mosquete quase encostados à cara. Surpreendido, deixei cair as ameixas e quase caí para trás; nesse momento apercebi-me de que havia mais homens armados por baixo de mim e só com grande esforço consegui evitar cair sobre as suas lâminas. Por trás deles, vi o rosto ansioso do boticário.

– Salitre – estava ele a gritar para quem vinha ver o que se passava. – O suficiente para fazer explodir uma casa, queria ele. E é um estrangeiro. Vestido como o Guido Fawkes.

– Fizeste muito bem, Isaiah Wentworth – disse outro homem. – De certeza que puseste fim a uma maquinação papista.

– Ele tem baús no quarto – acrescentou o estalajadeiro. – Baús com armas. Ouvi-as chocalhar quando os levámos para cima.

Eu estava tão estupefacto que nem sabia o que havia de responder, e o medo fez-me esquecer o meu inglês.

– Não são armas – disse, erguendo as mãos para mostrar que estava desarmado. – Não é maquinação.