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O Outono está a chegar.

Terei de passar o Inverno em Londres, claro. Talvez o próximo Inverno também. Pergunto-me se os Invernos aqui serão tão frios como em Brest. Mais frios ainda, provavelmente.

Através da neblina no Parque de St. James vejo uma silhueta alta a caminhar. Ele deve ter frio – veste apenas um casaco preto curto, desabotoado, por baixo do qual ondula uma camisa branca. Vários spaniels seguem-no como uma capa canina a arrastar pelo chão, enquanto ele caminha sobre o solo húmido com grandes passadas.

O rei.

Está completamente sozinho. Observo-o por um momento, depois percebo que ele se dirige à traseira da casa dos Arlington. Está a vir para cá.

Lady Arlington entra no meu quarto sem bater.

– O rei vem a caminho. – Inspecciona o cenário com um olhar: eu de camisa de noite, a olhar pela janela aberta como uma menina de escola. – Não há tempo a perder. – Atrás dela, uma criada entra a correr, com os braços cheios de escovas, água e ferros de enrolar. – Despache-se o mais depressa que conseguir e venha ter comigo à sala do pequeno-almoço.

– Com certeza.

Lady Arlington acena e eu dirijo-me ao centro do quarto para que a criada possa começar o seu trabalho. A rapariga faz uma reverência e eu levanto os braços para que ela possa despir-me a camisa de noite.

Lady Arlington não se mexe. Por um momento limita-se a olhar para mim, com expressão ilegível.

Depois acena outra vez à rapariga, como se eu tivesse passado na inspecção.

– Cinco minutos, Susan – diz-lhe. Enquanto sai para o corredor, oiço-a dar mais ordens em voz firme e calma.

*

– Pretendo falar a sós com mademoiselle de Keroualle.

Lady Arlington levanta-se imediatamente, faz uma reverência e sai sem uma palavra. Não faz qualquer comentário sobre a falta de decoro. A mera sugestão seria impugnar os motivos de um rei.

Apenas os criados, de pé de ambos os lados do aparador, ficam imóveis.

Estamos sentados frente a frente na grande mesa, agora vazia dos seus candelabros e copos. Carlos aponta para o meu prato.

– Café? Chocolate?

– Obrigada. Prefiro chá.

– Claro. Pelo que sei, toda a gente em Paris bebe chá, agora. Até a Minette. – Faz uma careta. – Quero dizer… a minha falecida irmã. Eu chamava-lhe Minette. Era a sua alcunha em criança.

– Eu sei. Ela lia-me as vossas cartas. Essas cartas eram aquilo que aguardava com mais ansiedade em todo o mundo.

Ele respira fundo.

– Conte-me como é que ela morreu.

Conto-lhe tudo o que sei e, enquanto falo, as lágrimas começam a deslizar-lhe pelas faces. Pouco depois, está a soluçar abertamente, a limpar as lágrimas com as mãos com gestos impacientes. Hesito, pensando que talvez esteja a perturbá-lo demasiado, mas ele indica-me que continue com um gesto.

Nunca tinha visto um homem chorar tão abertamente em frente de uma mulher. A dada altura, ele pega num guardanapo e limpa a cara com ele.

– E… diga-me… ela foi assassinada? – pergunta, depois de eu terminar. – Aquele bruto, ou um dos favoritos dele, mandou-a matar para poder dedicar-se aos seus vícios sem impedimento?

Agora é a minha vez de parecer insegura. Só posso dar uma resposta, mas estou a tentar perceber qual a melhor forma de o convencer dela.

– Na verdade, ele já podia dedicar-se a esses vícios sem impedimento. E, embora eu não seja uma grande admiradora do marido de Madame, não vejo como poderia ter sido um homicídio.

– Mas ela estava tão bem, em Dover… Nunca a tinha visto tão bela, ou tão bem.

Abano a cabeça.

– Sentia dores terríveis. Simplesmente estava decidida a não deixar que Vossa Majestade o visse.

– Como somos bons em dissimulação, nós os Stuart – diz ele, quase para si próprio. – Como nos mostramos pouco àqueles que mais nos amam.

– Ela amava-vos mais do que a qualquer outra pessoa viva.

– E eu a ela. – Fica um momento em silêncio, depois tira algo de dentro da camisa. – Trouxe as cartas que ela me escreveu. Im­porta-se de… – Não consegue terminar a frase, mas eu compreendo o que ele quer.

En français?

Oui. S’il vous plaît.

Abro a primeira carta e começo a ler.

Mon cher frère, votre Majesté…

CARLO

Encontre uma sala fresca e limpa, livre de sujidade e de todo o tipo de distracções.

O Livro dos Gelos

Por fim, Chiffinch arranjou-me um lugar na cozinha do palácio. Era muito parecida com aquilo que eu imaginava que o Inferno seria: uma sala enorme, cheia de fumo, onde quatro grandes fogos ardiam dia e noite e o fedor de carne queimada enchia o ar como um desagradável nevoeiro. Os cozinheiros trabalhavam em mesas compridas, como costureiras, abatendo os seus cutelos sobre grandes carcaças de vaca, ou cortando nacos de animais tão pequenos que, noutro lado qualquer, seriam postos de lado como não comestíveis. Pois os Ingleses, rapidamente me apercebi, eram obcecados com carne e não achavam nada estranho consumi-la quase diariamente. Contudo, esta sua carne de vaca, ou urso, ou porco, não era propriamente «cozinhada» no sentido que um francês ou italiano usaria a palavra; quer isto dizer que não era tornada mais saborosa pela perícia de um cozinheiro engenhoso, com a adição inteligente de molhos, temperos, ervas e por aí fora, mas simplesmente cravada num espeto e assada até ficar dura e desprovida de qualquer sabor. Vegetais e ervas eram, ao que parecia, quase desconhecidos, e embo­ra me dissessem que o rei, por vezes, comia fruta crua à francesa, os cozinheiros consideravam que isso era uma mania estrangeira e enviavam juntamente com a taça de fruta uma tábua com sobremesas inglesas «a sério», tais como tarte de maçã, pudim de sebo ou pão de ameixas. Os pratos nem sequer eram servidos separadamente: ia tudo para a sala de banquetes numa vaga caótica de serviço, cada cozinheiro transportando aquilo que fizera, sopas e assados e sobremesas, e era tudo empilhado para os convidados do rei se servirem. Chiffinch ficou bastante surpreendido quando lhe disse que, em França, os pratos eram servidos um de cada vez, como os actos de uma peça.

No entanto, o verdadeiro problema, para mim, era que não tinha sítio adequado para trabalhar. Mesmo que me afastasse para o canto mais distante possível da cozinha, seria impossível fazer um gelo que não derretesse com o calor ambiente assim que eu o tirasse da sabotiere. E, claro, havia a necessidade adicional de manter o meu processo secreto. Ao fim do primeiro dia já me tinha apercebido de que seria melhor arranjar local de trabalho noutro lado.

Pensei também em deixar os meus aposentos no Red Lion, onde a comida, em geral, era quase tão má como a que era servida ao rei. Contudo, havia uma excepção a esta regra: todos os dias serviam uma tarte diferente e estes pratos simples eram, para minha surpresa, quase comestíveis – quero com isto dizer que geralmente continham um vegetal ou dois e, às vezes, ervas como ligústica, manjerona ou salva. Numa ocasião, numa tarte de pedaços de peixe cozidos em leite, o meu palato saudoso distinguira até um murmúrio delicioso de estragão. Assim, decidi ficar, pelo menos por mais algum tempo, e perguntei ao estalajadeiro se poderia alugar-me uma cave ou câmara fria para o meu trabalho. Agora que sabia que eu tinha protectores tão poderosos, ele apressou-se a cumprir os meus desejos e foi buscar imediatamente a chave da cave.

Na verdade, a cave da estalagem revelou-se húmida, bafienta e desprovida de janelas, enquanto a cozinha era quase tão quente como a de Whitehall. Contudo, entre uma e outra, havia uma pequena copa situada numa curva das escadas, de tal forma que era quase subterrânea e, portanto, bastante fresca, mas com uma fila de pequenas janelas altas que deixavam entrar muita luz. Ao longo de uma parede havia um parapeito de pedra e, a um lado, uma mesa com tampo de mármore. Ao fundo, tinha um recanto sem janelas onde eu podia pôr uma pilha de gelo. Não vi sinais de humidade e toda a divisão estava imaculada.