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– Era a leitaria, quando fazíamos o nosso próprio queijo – explicou o estalajadeiro, que se chamava Titus Clarke. – Agora é onde a Hannah trabalha.

A ocupante actual da divisão era, evidentemente, uma trabalhadora organizada: os instrumentos de cozinha, rolos da massa e por aí fora, estavam muito bem alinhados ao longo de uma parede e as tigelas empilhadas debaixo da mesa. Os tabuleiros de ovos estavam cobertos por uma rede mosquiteira e uma saca de farinha fora colocada dentro de um barril elevado para a proteger de eventual humidade ou ratos.

– Servirá muito bem – disse, olhando em volta. – Quanto quer pela renda?

O estalajadeiro pareceu um pouco ansioso.

– Para a partilharem? Há espaço suficiente para os dois…

Abanei a cabeça.

– Preciso de privacidade total.

– Bom, estou certo de que a Hannah compreenderá – disse ele, nervoso. – Afinal de contas, o rei tem de ter os seus gelos. Falarei com ela esta tarde.

Mandei levar os meus baús para baixo, desembalei as minhas coisas e comecei imediatamente a trabalhar num gelo de marmelos. Acabara de chegar à fase em que estava a deitar gelo esmagado para a sabotiere quando a cortina que servia de porta se abriu e uma mulher de aproximadamente trinta anos, com um avental, entrou. Ao seu lado tinha o rapaz que tratava do calçado, Elias.

– O que está a fazer? – perguntou ela.

Apressadamente, cobri a mistura com um pano.

– Não é da sua conta.

– Na verdade, é – retorquiu ela –, uma vez que o Titus me informou de que, seja lá o que for, significa que tenho de deixar a minha copa.

– Sou o confeiteiro de Sua Majestade – disse-lhe, um pouco surpreendido pelo tom de voz dela. – O trabalho que faço aqui é confidencial.

– E o trabalho que eu faço aqui não pode ser feito noutro lado. Fazer massa exige um ambiente frio, como com certeza sabe, e a cozinha principal é demasiado quente.

Atrás dela, o estalajadeiro encolheu-se para entrar, obviamente ansioso por evitar um confronto.

– Hannah, o cavalheiro alugou-me a divisão a mim e ponto final.

– Muito bem – disse ela, encolhendo os ombros. – Nesse caso, é também o ponto final nas minhas tartes. Elias, vai-me buscar um saco. – Começou a tirar os rolos da massa dos suportes. O estalajadeiro lançou-me um olhar apologético, como se quisesse dizer que lamentava a interrupção mas felizmente já estava tudo resolvido.

– Espere – disse eu à mulher. – É você que faz as tartes?

– Era eu – confirmou ela. – Mas já não sou, ao que parece.

Dei por mim num dilema. Pois a verdade era que, como já disse, as tartes do Lion eram uma das principais razões pelas quais decidira ficar aqui, e a perspectiva de me ver privado delas era decididamente desagradável.

– Por quanto tempo precisa do espaço? – perguntei.

– Uma ou duas horas por dia, bem cedo.

Tomei uma decisão. Com certeza que não haveria qualquer perigo em deixar uma criada usar o espaço de vez em quando.

– Muito bem. Pode continuar a fazer as suas tartes aqui.

Para minha surpresa, ela não me agradeceu, simplesmente cruzou os braços sobre o peito, como se estivesse à espera do «mas».

– É tudo – acrescentei.

– Não lhe vou pagar renda – disse ela. – O Titus já tem lucro mais do que suficiente com as tartes.

– Nesse caso pode pagar-me com algum trabalho, limpando os meus recipientes, esse tipo de coisas. E tu – chamei o rapaz –, gostarias de ser meu assistente? Preciso de alguém que rale os meus blocos de gelo todas as manhãs.

Ele arregalou os olhos.

– Posso usar um casaco bonito como o seu?

Ri-me.

– Não, pois não irás à corte. Mas pago-te um dinheiro por semana.

Ele assentiu.

– Está bem.

– Nesse caso, está decidido. Mas ambos têm de jurar solenemente que nunca revelarão nada do que virem aqui. O processo é secreto e tenciono mantê-lo assim. Titus, pode emprestar-me uma Bíblia?

Mais uma vez, fiquei surpreendido com as suas reacções a um pedido tão simples. Nenhum deles se mexeu e nos olhos da mulher havia – ou muito me enganava – uma expressão ardente de desafio.

– Para a jura – expliquei. – Têm de jurar sobre a Bíblia que não contarão a ninguém como eu faço os meus gelos.

O estalajadeiro estava a torcer as mãos.

– Se me permite explicar, senhor, a posição da Hannah sobre o assunto…

– Sou perfeitamente capaz de me explicar sozinha – interrompeu a mulher. – Nós não fazemos juras.

Olhei para ela, estupefacto.

– Não? Porquê?

– Primeiro, porque não usamos Deus como uma espécie de talismã supersticioso ou um papão para assustar pessoas crédulas. Segundo, porque uma jura implica lealdade a uma autoridade superior à nossa própria consciência.

– Mas, se não jurar, não posso contratá-la – ressalvei.

– Então não me contrate – respondeu ela, simplesmente. – La­mento muito, mas é assim. Posso dizer-lhe que não trairei a sua confiança; mas jurar, não juro.

– Compreendo. – Eu nunca me vira numa situação como esta. Mais uma vez me ocorreu que França e Itália, apesar de separadas pelos Alpes, tinham muito mais em comum do que qualquer uma dessas nações tinha com esta estranha ilha a apenas trinta quilómetros da costa de França.

Ela apontou para as paredes.

– Então? Quer que retire as minhas coisas ou não?

– Deixe-as estar, por enquanto. Terei de pensar nisto. Entretanto, pode fazer algum trabalho para mim e veremos como se sai.

– Vou ficar à experiência?

– Exactamente.

Ela encolheu os ombros.

– Muito bem. – Disse-o como se estivesse a concordar com determinadas condições, e não a aceitar ordens de um patrão. Perguntei-me se todos os criados domésticos em Inglaterra seriam tão desprovidos de deferência. Se assim fosse, era um espanto que se fizesse algum trabalho.

A pequena quantidade de gelo fresco que trouxera comigo de França rapidamente se esgotou. Mesmo que o rei não o tivesse sugerido, eu ver-me-ia obrigado a inspeccionar a sua casa de gelo.

O Parque de St. James era um espaço bastante agradável, embora, claro, não fosse nada em comparação com Marly ou Versalhes. A meio, alinhado com as janelas dos aposentos do rei, havia um lago comprido e estreito, apenas um pouco mais largo do que um canal. Os terrenos eram salpicados por árvores e vegetação rasteira, ao natural, e aqui e ali viam-se veados a pastar. No entanto, vi por todo o lado projectos abandonados ou por terminar. Um edifício ao estilo francês ainda não tinha telhado. Uma estrada, em direcção a oeste, começava grandiosamente entre dois postes de pedra, mas desaparecia ao fim de cem metros. E o muro que rodeava o parque só abrangia metade, pelo que qualquer pessoa que quisesse podia entrar sem impedimento.

A casa de gelo ficava no lado norte, perto de Picadilly Hall, numa ligeira inclinação, sob algumas árvores – a pior localização possível. Contudo, o caminho de tijolo sinuoso que levava à porta era bastante adequado e a porta de um tamanho sensato – pequena, baixa e virada para norte. No entanto, estava entreaberta.

Eu tomara a precaução de trazer comigo algumas velas finas, para me dar luz, mas não precisava de me ter incomodado: entrava alguma luz do dia por baixo do beiral do telhado e já havia uma vela acesa na parede. Contudo, apesar da luz, não olhei para baixo e, assim que dei um passo para o interior, vi-me mergulhado em água suja e gelada até ao tornozelo. Tirei o pé, com uma imprecação, e percebi que não estava só.

– Precisamos de palha, John – estava uma voz a dizer do outro lado do gelo. – Palha em fardos, para colocar à volta. Mas a palha apodrecerá com esta humidade, portanto primeiro temos de escoar o chão.