– Ainda há três semanas o escoámos – respondeu uma voz mais áspera. – E com certeza que a palha elevará ainda mais a temperatura.
Ouvi passos a chapinharem na água em direcção a mim. Ainda não conseguia ver ninguém, pois a pilha de gelo bloqueava-me a visão para o outro lado da divisão circular.
A primeira voz suspirou.
– A palha tem a propriedade de manter quente um sítio quente, sim. Mas também manterá frio um sítio frio.
– Então, na prática, mantém o calor do lado de fora, não o frio do lado de dentro? – perguntou uma voz de mulher.
– Nunca tinha pensado nisso dessa forma, mas sim… é basicamente isso, Elizabeth – respondeu o primeiro homem.
Ergui a voz e disse:
– A palha não vai resolver o vosso problema.
– Quem está aí? – perguntou o homem de voz mais áspera. Uma lanterna ergueu-se e iluminou três rostos. – O que faz aqui, senhor? Isto é propriedade do rei.
– E eu estou aqui por ordens dele. – Avancei. – Carlo Demirco, ao vosso serviço.
– O confeiteiro?
– Ele mesmo.
O grupo que se aproximou de mim era formado por três pessoas, envoltas em casacos grossos por causa do frio. O homem com a lanterna era, evidentemente, o que se chamava John. O outro, o que sugerira a palha, caminhava apoiado no braço de uma mulher e, na outra mão, tinha uma bengala. Foi este homem que se dirigiu a mim em tom ansioso.
– Diga-nos, Demirco. Porque não é a palha suficiente?
– Nem toda a palha do mundo pode compensar uma concepção deficiente.
– Atenção à língua – resmungou o homem mais rude. – Foi aqui o ilustre Robert Boyle que deu instruções aos arquitectos, segundo os desenhos que Sir John Evelyn trouxe de Itália.
Encolhi os ombros.
– A construção é bastante boa. A localização é que é fraca. E o escoadouro central está bloqueado ou não é adequado.
– Um escoadouro central! – exclamou Boyle. – Claro! Como é que escoam estes locais em Itália?
– Em Florença, colocam uma roda de carroça sobre um cano central, para deixar sair toda a água derretida. O gelo aguenta-se mais tempo se estiver seco.
– Sim? – perguntou Boyle, interessado. – Agora que penso nisso, é possível. A água é o elemento natural do gelo, portanto pode facilitar a transição dos corpúsculos de arrefecimento… Podíamos confirmá-lo com uma simples experiência. Venham.
Saiu apressadamente e dirigiu-se a um edifício imediatamente atrás da casa de gelo. Todos o seguimos, a mulher porque ainda estava a apoiar-lhe o braço, eu e John apenas porque – pareceu-me – Boyle tinha um ar de comando natural.
– Cuidado, tio – disse a mulher, ansiosamente. – Já esteve vinte minutos ali ao frio e o doutor Sydenham disse…
– Se um homem adoecesse por causa do frio – interrompeu Boyle em tom jovial –, há muito tempo que eu estaria morto. Aqui dentro, Demirco.
Abriu uma porta pesada e entrámos numa divisão iluminada e fria. Era, apercebi-me, uma espécie de oficina, com prateleiras cobertas de instrumentos químicos: alambiques, almofarizes, medidores e por aí fora.
– Que lugar é este? – perguntei, curioso.
Boyle estava já a pesar alguns blocos de gelo pequenos e a apontar os pesos num bloco de notas.
– O meu laboratório. O meu segundo laboratório, melhor dizendo. Aqui, com a permissão do rei, levo a cabo as minhas investigações sobre o frio. – Olhou para mim. – Talvez ache estranho, senhor, que um químico prefira trabalhar com gelo em vez de uma fornalha.
– De todo – respondi. – Passei a vida inteira a trabalhar com gelo e, apesar disso, estou convencido de que compreendo ainda muito mal as suas propriedades.
Ele acenou.
– Então vamos pegar num pequeno pedaço de gelo e colocá-lo em água, assim, e depois colocar outro igual assim, de forma a poder escoar. Qual derreterá mais depressa?
– É uma perda de tempo – disse eu, encolhendo os ombros. – Já sei a resposta.
– Talvez, senhor, mas eu não sei, e enquanto não a provar de forma satisfatória não a considerarei verdadeira. Nullius in verba, sim?
– É o lema da sociedade deles – explicou a mulher.
Veio-me à mente uma recordação vaga dos tempos de escola.
– «Não existe verdade nas palavras, portanto não jurarei pela autoridade de qualquer mestre.» Horácio, não é?
– Muito bem – disse Boyle, com um aceno.
– Mas eu penso que os resultados desta experiência podem ser exactamente opostos ao que o Signor Demirco descreveu – disse a mulher, com ar pensativo. – Porque o gelo numa bebida torna-a muito fria, enquanto o gelo no ar não arrefece a sala na mesma proporção.
– Bom, veremos, veremos – disse Boyle alegremente. – Mas primeiro… – estava a remexer num monte de papéis. – Aqui está. Demirco, mostre-nos o que fizemos mal.
Abriu à minha frente os planos do arquitecto. Com eles tinha alguns esboços arrancados do bloco de notas de um viajante.
– O escoadouro fica aqui – disse eu, apontando. – Porém, mesmo que acrescentem um escoadouro, terão o problema das árvores. É melhor ter a casa de gelo afundada no solo, numa clareira aberta.
– Nesse caso, teremos de abater as árvores e fazer taludes com a terra – disse Boyle. – O que me diz, John?
O outro homem suspirou.
– Se for necessário, assim faremos. Apesar de ainda não termos começado a trabalhar na ponte para a nova estrada do rei para Chelsea, nem nas gaiolas no passeio.
– As estradas podem esperar. O gelo derrete – disse Boyle. – Por falar nisso… – Virou-se para os blocos de gelo em cima da mesa.
– O que está dentro de água parece realmente estar a encolher mais depressa – admitiu a sobrinha.
Boyle consultou um relógio de bolso.
– Gostava de me ter lembrado de adicionar uma terceira taça com sal. Seria interessante comprar até que ponto isso acelera o processo.
– Quer dizer salitre – disse, e depois mordi a língua. Não devia estar a discutir os segredos da minha arte com nenhum inglês, muito menos com alguém que era claramente capaz de os compreender.
Mas Boyle estava a abanar a cabeça.
– Salitre? Não, isso é muito antiquado. O salitre não faz mais do que o sal comum neste processo.
– Sal comum? – repeti. – Mas isso não… – parei, confuso.
Boyle lançou-me um olhar divertido.
– Garanto-lhe, senhor: se tem estado a usar salitre, tem andado a desperdiçar muito dinheiro. Na realidade, é o sal no salitre que faz a tarefa que pretende. Os corpúsculos do sal são atraídos pelos do gelo, libertando-os assim do seu estado sólido.
– Pensava que nem todos os membros concordavam com a sua teoria dos corpúsculos, tio – murmurou a mulher.
Ele franziu a testa.
– Não discordam. Alguns dos virtuosi precisam de mais provas, o que é uma questão completamente diferente.
– Virtuosi? – perguntei.
– O Colégio Invisível – respondeu Boyle. – O Bando de Gresham.
– Ele refere-se à Real Sociedade de Londres para o Progresso do Conhecimento Natural – explicou Elizabeth. – Um grupo de filósofos naturais que investigam e debatem estas questões.
Boyle acenou afirmativamente.
– O frio é um dos nossos interesses particulares.
– Embora seja justo dizer – acrescentou ela –, que há tantos outros fenómenos naturais abrangidos por essa designação que o frio dificilmente é único, nesse aspecto. Ou mesmo particular.
– Compreendo – disse. Depois ocorreu-me uma coisa. – As vossas… investigações filosóficas conseguiriam dizer-me por que motivo certos líquidos ficam mais espessos do que outros ao congelar?
– Prossiga – disse Boyle. – Pressinto um mistério interessante.