– Não! – exclamo. – Não seria capaz disso. Nunca.
Ela separa-me o cabelo ao meio e puxa-o para o lado.
– Já pensou em usá-lo assim? – pergunta, mudando de assunto tão naturalmente como se não estivéssemos a discutir nada mais importante do que uma nova coiffure.
CARLO
Únicos entre as sobremesas, os gelos despertam, em igual medida, curiosidade e assombro.
O Livro dos Gelos
Poder-se-ia pensar, em resultado das minhas conversas com eles sobre juras, cortesãos e outros assuntos, que os criados do Red Lion eram um grupo invulgarmente devoto. Na realidade, rapidamente me apercebi de que o local era pouco melhor do que um bordel.
No continente, um homem sabe que está a visitar uma casa de má reputação e que, depois de concluídos os seus assuntos, pode fechar a porta e esquecer tudo o que lá se passou. Em Inglaterra, a demarcação entre estalagem e prostíbulo, criada e meretriz, era bastante menos definida – na verdade, eles têm uma palavra, rameira, que descreve uma mulher que ocupa a posição mais baixa na hierarquia dos criados domésticos mas indica também que provavelmente estará disponível para tudo o que mais lhe possa ser pedido. Rapidamente se tornou evidente que, no Red Lion, havia várias rameiras que completavam os seus salários desta forma. Estas jovens – Mary, Rose e mais duas ou três – trabalhavam abertamente nas salas de refeições à noite, indo de cliente em cliente com o pretexto de lhes levar cerveja, metendo-se com eles de forma sedutora e depois desaparecendo com eles para um dos quartos no sótão.
Inicialmente, fiquei um pouco aborrecido quando descobri o tipo de lugar onde me encontrava – não porque o vício propriamente dito me incomodasse, mas porque em França ou Itália, ter a base do nosso negócio num bordel seria motivo para a retirada imediata do alvará real. Em Inglaterra, contudo, era evidente que as coisas não eram tão simples. Na verdade, quando falei nisso a Robert Cassell, ele pareceu quase divertido.
– Bom, claro que sim – disse. – O que esperava? É uma taberna londrina.
– As autoridades não se opõem?
– Em teoria, sim… mas na prática têm coisas mais importantes com que se preocupar.
As estalagens de Londres, explicou-me, tinham sido antros de dissidência durante a República, servindo muitas vezes de assento a reuniões parlamentares informais de homens e mulheres trabalhadores. Algumas tinham até as suas próprias prensas, nas quais produziam jornais e opúsculos revolucionários que a populaça devorava avidamente. Depois da purga necessária após a Restauração, decidira-se que a prostituição era o menor dos muitos males que era preciso resolver.
– Não existe uma única criada de balcão em Londres que não se possa comprar com meio xelim de prata – concluiu ele.
– Mas julgava que as pessoas aqui eram puritanas, antes da Restauração?
– Algumas, sim, mas havia muitos tipos de dissidentes e todos tinham opiniões diferentes sobre aquilo que era aceitável. Cavadores, Quakers, Oradores, Igualitaristas, a Família do Amor, Muggletonianos, Quintos Monárquicos… Foram todos proibidos entretanto, mas durante algum tempo a Inglaterra teve quase tantas seitas loucas como condados. Algumas, como os Oradores ou a Família do Amor, eram praticamente indistinguíveis de libertinos, excepto que no caso deles disfarçavam com uma data de disparates sobre Cristo em Nós e comunalismo e irmandade. Mas, fosse qual fosse a seita,
o que todas tinham em comum era a recusa total em aceitar outra autoridade que não a sua.
Pensei na atitude estranhamente desafiadora de Hannah à expulsão da sua copa. Em França ou Itália, uma criada teria obedecido sem debate, mas eu percebia agora que as pessoas aqui, depois de terem saboreado a revolução, podiam ter alguma dificuldade em livrar-se desse hábito.
No entanto, nunca me passara pela cabeça que Hannah estivesse entre essas criadas que, como Cassell me dissera, podiam ser compradas por meio xelim de prata, pelo que fiquei surpreendido quando assisti a uma altercação nesse sentido entre ela e um dos seus clientes. Os dois estavam escondidos atrás de uma das sólidas traves de carvalho escuro que sustentavam o tecto na sala de refeições principal e a falar, apesar da raiva evidente, em voz baixa; provavelmente eu não teria sequer olhado para eles se não estivesse à espera que ela trouxesse a minha comida. Depois reparei em duas coisas. A primeira foi que o homem estava mais bem vestido do que a maioria dos clientes do Lion – quase tão bem vestido como eu. A segunda foi que estava a apertar o braço de Hannah com força.
– Não fales com os teus superiores dessa maneira – estava ele a dizer.
– Nenhum homem é superior a mim, nem nenhuma mulher – retorquiu ela. – O que o torna melhor do que eu, exactamente? A noite passada, eu estava disposta a aceitar o seu dinheiro e você estava disposto a oferecê-lo. A única diferença é que não voltarei a cometer esse erro.
A resposta dele foi dada em voz demasiado baixa para que eu a percebesse mas vi que estava a sacudi-la bruscamente enquanto falava, colocando em grande perigo a minha tarte, que quase caiu do prato que ela segurava na outra mão.
– …para a prisão, sua puta dissidente. Não penses que não sou capaz.
Ela não respondeu a isto, mas vi que empalidecera. O homem soltou-a.
– Falaremos disto lá fora – disse, bruscamente, e virou-lhe costas.
Ela aproximou-se com a minha comida e tinha as mãos a tremer quando a pousou na mesa, embora a sua voz, quando me perguntou se precisava de mais cerveja, fosse seca e nivelada. Respondi que não e ela afastou-se sem mais uma palavra. Vi-a dirigir-se à porta por onde o homem saíra, que dava para o pátio onde eram guardados os barris vazios.
Encolhi os ombros e dediquei a minha atenção à tarte. Perguntara de que era antes de pedir; a resposta deixara-me na mesma, mas agora, ao perfurar a crosta com a faca, esta libertou uma baforada de calor fragrante, revelando vários pedaços macios e fumegantes de batata, algumas argolas pálidas de alho-francês, lascas de frango num caldo cremoso, uma boa dose de tomilho e até alguns pedaços de uma fruta escura que rapidamente descobri serem ameixas de conserva.
Contudo, havia algo a estragar o meu prazer, e era o conhecimento de que, enquanto eu comia a minha tarte, a mulher que a fizera estava lá fora, entregando-se a um homem que desejava claramente recusar. A culpa talvez fosse dela, mas eu não gostara do aspecto do tipo, nem da maneira como a sacudira pelo braço, e desconfiava de que ele não estaria certamente a ser mais meigo com ela neste momento.
Com um suspiro, afastei o prato, levantei-me e dirigi-me à porta do pátio. Lá fora estava escuro, mas ouvi um som proveniente de trás de uma pilha de barris à minha direita.
– Quem está aí? – gritei. Uma mulher soltou uma exclamação abafada, mas o som foi imediatamente cortado, como se ele lhe tivesse apertado a garganta. Gritei: – Eh, chamem a guarda! Há fornicação nas ruas! – A frase surpreendeu-me, até me lembrar de que eram as palavras gritadas pelos bedéis da noite quando percorriam as ruas de madrugada, à procura de ilícitos. Devia tê-las ouvido uma dúzia de vezes sob a minha janela enquanto dormia.
De trás dos barris ouvi o tilintar do cinto de uma espada, uma imprecação abafada e depois o som inconfundível de uma forte bofetada. Hannah gritou, passos afastaram-se a correr e eu fui investigar o que se passava atrás dos barris.
Ela estava deitada no chão, para onde o golpe dele a atirara. Pela forma como tinha as saias indecentemente amontoadas à volta da cintura, percebi que chegara tarde de mais para impedir o acto que ambos tinham saído para executar; mas talvez, pelo menos, tivesse conseguido impedir que ela se magoasse mais.
– Obrigada – agradeceu Hannah.