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O Livro dos Gelos

O fato de salteador ficava-lhe bem, realçando a cintura fina, as ancas esguias, as costas longas, o pescoço elegante. Mas era a sua postura que a distinguia das damas inglesas à sua volta. Bastaria observar o seu porte para perceber que era uma filha de boas famílias de França.

O rei dançou com ela. Não consegui desviar os olhos. Nem eu, nem ninguém: mas para mim era diferente.

Pela forma como as outras pessoas olhavam para ela, parecia que ela era uma galinha e eles uma matilha de lobos, prontos para a despedaçarem. Estava sozinha contra todos, mas nunca vacilou.

Olhei para ela e percebi que a amava.

Como podia tê-lo negado durante tanto tempo? Amava-a desde que a encontrara sob as nespereiras em Versalhes.

Talvez nos voltemos a encontrar.

Se ambos continuarmos à procura de sítios para estarmos sozinhos, signor, pode ter a certeza disso…

A dança chegou ao fim. O tempo retomou a sua marcha inexorável. Apesar disso, continuei a olhar para ela, enquanto o rei a soltava. Ela voltou para o fundo da sala. Não tinha ninguém com quem ir ter, ninguém com quem estar.

Já ouvi o amor ser comparado a um fogo, mas essa comparação está errada. Quando tocamos numa chama, afastamo-nos. A dor é rápida e súbita e depois desaparece.

O amor é como gelo. Apodera-se de nós sorrateiramente, penetrando no nosso corpo de forma furtiva, desfazendo as nossas defesas, encontrando os recantos mais escondidos da nossa carne. Não é como calor ou dor ou ardor, mas antes como um entorpecimento interior, como se o nosso coração estivesse a solidificar, a transformar-nos em pedra. O amor aperta-nos com uma força capaz de partir rochas ou estilhaçar o casco de barcos. O amor consegue levantar lajes do pavimento, desfazer mármore, fazer mirrar as folhas nas árvores.

Eu amava-a, e nunca a poderia ter.

Depois algo chamou a minha atenção e vi uma figura alta a observá-la também, por cima das cabeças dos seus cortesãos. As pessoas estavam a rir e a brincar mas ele não lhes prestava qualquer atenção. Estava a olhar para Louise, imóvel como uma estátua. Tão imóvel como eu.

O rei.

Vi que ele a amava, tal como eu.

Carlo e rei Carlos. Fruto da mesma árvore. Reflexos num espelho. Rivais, sem o serem.

Pois ele era rei e eu não. Ele podia tê-la e eu não. O gelo acabaria por deixar o seu coração, mas ficaria para sempre no meu.

LOUISE

As máscaras não enganam ninguém. No entanto, não reconheço a mulher de viseira xadrez que se coloca ao meu lado mais tarde, junto da mesa.

– Então é a senhora a minha substituta.

Viro-me para ela. Alta, elegante, mais velha do que eu. Mas há qualquer coisa no seu porte – confiante, forte, autoritário – que me põe de sobreaviso.

– Oh, não se preocupe – diz ela. – Foi bom enquanto durou. Além disso, como sem dúvida já deve ter descoberto, alguns dos… pecadilhos dele podem tornar-se bastante aborrecidos.

– Quem é a senhora?

– Não sabe? – Ela parece divertida. – Bom, suponho que há, de facto, muitas de nós. Mas eu sou a única, até agora, que ganhei um título. Bom, é verdade que tive de o deixar ver-me com três dos seus guardas para ele fazer de mim duquesa.

O meu choque deve ser evidente, apesar da máscara.

– Oh, ele ainda não lhe sugeriu isso? – murmura. – Dê-lhe tempo, minha querida, dê-lhe tempo. Mas não se deixe enganar por aquelas maneiras impecáveis. Apesar de todo aquele charme, ele é tão libertino como os outros todos.

Um lacaio avança com uma travessa carregada de lagostins. Espeta uma faca num e oferece-mo. Olho em volta. A outra mulher desapareceu.

– Onde fica a retrete? – pergunto ao lacaio. – Depressa… acho que vou vomitar.

PARTE TRÊS

«O afecto do rei de Inglaterra por mademoiselle de Keroualle cresce de dia para dia, e o pequeno ataque de náusea que ela teve ontem deixa-me esperançoso de que a sua sorte continue, pelo menos durante o tempo restante da minha embaixada…»

Colbert de Croissy, embaixador francês em Inglaterra,

para Louvois, ministro da Guerra francês

«O rei ficou surpreendido com o que me escreveu sobre mademoiselle de Keroualle, cuja conduta enquanto esteve aqui, e desde que está em Inglaterra, não inspirava grande expectativa de que conseguisse obter tal sucesso tão rapidamente. Sua Majestade aguarda ansioso por mais informações sobre a ligação que o senhor julga existir entre o rei e ela…»

Louvois para Colbert

Louise

–Sua Majestade Cristã quer saber o quê?

– Se existem, ah… notícias felizes. Se o rei de Inglaterra irá ser abençoado, talvez, com um filho.

– Terá de perguntá-lo à rainha. Não ouvi dizer nada a esse respeito, nem será provável que oiça.

– Na verdade, mademoiselle, eu não estava a referir-me à rainha.

– Então a quem? De quem estava a falar, Excelência?

O embaixador tem a decência de parecer embaraçado.

– Tinha formado a opinião de que as suas excelentes relações com o rei poderiam, talvez, ser…

Olho para ele.

– Inteiramente respeitáveis. E assim permanecerão.

– Compreendo. – O embaixador parece ter empalidecido um pouco. – Então não há nada que eu deva transmitir a Versalhes? O próprio rei pediu um… esclarecimento.

– Pode dizer a Sua Majestade Cristã que estou perfeitamente consciente do facto de que a honra de França depende da honra de cada um dos seus cidadãos. E que nunca, nunca, farei algo para causar descrédito à reputação do nosso país.

– Sim. Sim, com certeza.

– Eu sou Louise Renee de Penacöet, dama de Keroualle, a filha mais velha da família mais antiga da Bretanha. Não uma florista vulgar.

Ele faz uma vénia rígida.

– Somos de facto afortunados por ter entre nós alguém de tão distinta linhagem. E de moral tão irrepreensível, claro.

Bennet, lorde Arlington, para Ralph Montagu, enviado inglês:

Colbert é um idiota: prometeu ao rei de França que o jogo estava quase no fim e agora tem a infeliz tarefa de lhe dizer que ainda mal começou. Contudo, Louvois parece ter as suas próprias fontes e sabe muito mais do que o seu embaixador sobre o que se passa realmente em Whitehall– certamente que sabe o que a rapariga em questão fez ou não fez e, a julgar pelas cartas que vimos, ele disse a Colbert, em termos muito claros, para confirmar os factos antes de enviar mexericos através do correio diplomático. Porém, tudo isto teve como consequência que o embaixador está agora embaraçado e deseja que nós aceleremos as coisas. Naturalmente, deixei-lhe bem claro que pode contar com a nossa ajuda, mas que também está na altura de o seu rei desempenhar o seu papel. Isto deixou-o ainda mais ansioso, pois claro que não pode dizer ao rei o que deve fazer, mas não seria embaixador se não fosse capaz de encontrar maneira de colocar a minha sugestão de modo a que pareça ser ideia do próprio Luís…

Colbert para Sua Majestade Cristã, Luís XIV:

Senhor: é certo que o rei de Inglaterra mostra um caloroso afecto por mademoiselle de Keroualle, e talvez tenhais tido conhecimento, por outras fontes, dos aposentos sumptuosos que lhe foram atribuídos em Whitehall. Sua Majestade dirige-se ao apartamento dela todas as manhãs, às nove horas, e nunca fica menos de uma hora, por vezes duas. Regressa depois de jantar, cobre todas as suas apostas na mesa de jogo e não deixa que lhe falte nada. Todos os ministros cortejam avidamente a amizade desta senhora e lorde Arlington disse-me recentemente que estava muito satisfeito por ver cada vez mais reforçada a ligação do rei a mademoiselle de Keroualle. Lorde Arlington disse-me também que Sua Majestade não é homem de partilhar assuntos de Estado com as senhoras; no entanto, já que elas têm sempre o poder de prejudicar quem não lhes agrada, é muito melhor para os bons servos do rei que Sua Majestade tenha inclinação por esta senhora, que não é pessoa maliciosa e é uma fidalga, em vez de por actrizes e outras criaturas indignas do género, que são sempre uma incógnita. Disse-me ainda lorde Arlington que era necessário aconselhar esta jovem a dedicar-se ao rei, de modo a que ele não encontre outra coisa junto dela senão prazer, paz e sossego. Acrescentou ainda que, se lady Arlington tivesse seguido as suas sugestões, aconselharia esta jovem a ceder sem reservas aos desejos do rei e dir-lhe-ia que não havia alternativa para ela a não ser um convento em França, e que eu devia ser o primeiro a fazê-la compreender isto. Em tom jocoso, respondi-lhe que estou demasiado grato ao rei e não sou idiota o suficiente para dizer a mademoiselle para preferir a religião às boas graças de Sua Majestade; que estava também convencido de que ela não estava à espera dos meus conselhos mas que, apesar disso, lhos daria, para mostrar o valor que lorde Arlington e eu damos à sua influência, e para a informar da obrigação que ela tem perante o meu senhor…