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Veio ter comigo a meio da noite e sacudiu-me para me acordar. A pessoa que o trouxera através do labirinto de salas de serviço desapareceu, sem ser vista, e quando eu acordei completamente Audiger já estava a falar de Paris, da corte gloriosa que o jovem Luís XIV estava a construir, dos palácios novos em Marly e Versalhes; riquezas muito superiores até à dos Médicis, e uma cidade repleta de homens e mulheres elegantes, ávidos por novas delícias. Havia casas de café e chocolate a abrir por toda a cidade de Paris: uma pessoa capaz de fazer bebidas geladas e confecções frescas nunca passaria fome, e, juntos – dois homens jovens que, entre ambos, conseguiriam criar todo o tipo de confecções ou novidades – certamente que chegariam ao serviço do próprio rei… Nesta altura eu já quase não estava a ouvir. Ouvira tudo o que precisava. Se queria fugir da corte dos Médicis com os segredos do negócio de um persa na cabeça, precisava apenas de duas coisas: um protector de poder pelo menos equivalente ao dos Médicis, para que não pudessem simplesmente exigir o meu regresso, e ir para um sítio muito, muito longe do alcance de um punhal persa.

– Tenho duas condições – disse, quando Audiger finalmente parou para respirar.

– Quais?

– Nunca chamar mestre a ninguém. E vinte e quatro horas para tentar convencer a Emilia a vir também.

– Feito – disse Audiger, estendendo a mão. – Encontramo-nos junto da Porta San Miniato à meia-noite de amanhã.

*

Tão cedo quanto achei decente, na manhã seguinte, fui ter com Emilia à sala das costureiras. Puxei-a à parte e contei-lhe o meu plano.

– Mas… – disse ela. A sua voz fraquejou. – Se fugires, serás apanhado. E depois irás para a prisão. Podes até ser enforcado.

– É a única opção, agora. Não percebes? Não há nada para nós aqui. Se partirmos, pelo menos teremos uma oportunidade.

Ela olhou em volta.

– Não posso falar agora. A minha mestra…

– Emilia! – sussurrei. – Tenho de saber. Vens ou não?

– Eu… eu… – gaguejou, lançando um olhar nervoso à porta, e nesse momento compreendi que ela tinha demasiado medo.

Desesperado, disse:

– Ouve, eu compreendo, cara. Amavas-me porque pensavas que era permitido. Agora que achas que isso pode arranjar-te problemas, estás assustada. Mas é a única oportunidade que qualquer um de nós terá. Tenho de a aproveitar. A questão é, vens ou não vens?

– Hei-de amar-te sempre – murmurou ela.

Senti um grande peso abater-se sobre mim.

– Isso quer dizer não.

– Por favor, Carlo. É demasiado arriscado.

Nessa noite, eu estava à espera junto da Porta San Miniato muito antes de os sinos da igreja tocarem a meia-noite. Ao meu lado, tinha uma arca com um saque considerável do equipamento de fazer gelo de Ahmad.

Mandámos parar a diligence, a carruagem rápida do correio, puxada por seis cavalos, que ia de Roma a Paris em longas etapas ininterruptas. Normalmente não levava passageiros; mais uma vez, Audiger parecia ter a confiança e o dinheiro necessários para nos comprar um lugar.

Enquanto viajávamos para norte, olhei pela janela. Nunca tinha estado mais longe do que Pisa e comecei a pensar, com um aperto no coração, que cada quilómetro que fazíamos me levava para mais longe de Emilia.

– Estive a pensar – disse Audiger.

Com esforço, pus de lado os meus pensamentos e virei-me para ele.

– Sim?

– Antes de chegarmos a Paris temos de te arranjar roupas decentes. – O francês apontou para a sua indumentária elegante. – É im­portante que não nos pareçamos com mercadores. Na corte francesa, as aparências são tudo.

Encolhi os ombros.

– Está bem.

– E temos de pensar qual será a melhor maneira de abordar o rei. Conheço um dos seus criados particulares: podemos suborná-lo para conseguirmos chegar à presença real, mas será apenas um desperdício de tempo a menos que possamos oferecer um presente ao rei… algo especial, algo que o faça falar de nós a todos os homens e mulheres da sua corte.

– Muito bem. – Bocejei. Agora que a tensão da fuga ficara para trás, estava exausto. – Podemos fazer-lhe um gelo.

Audiger abanou a cabeça.

– Ainda mais especial do que isso.

– Vou pensar no assunto. – Esta capacidade que Audiger tinha de se preocupar não só com as próximas vinte e quatro horas, mas com eventos que não aconteceriam nos próximos dias ou semanas, espantava-me.

– Há mais uma coisa. – Audiger hesitou. – Disseste que não chamarias mestre a homem nenhum. É justo. Mas acho, apesar disso, que devias tratar-me por mestre quando estivermos na presença de outras pessoas.

Agora eu estava bem acordado.

– Porquê?

– Simplesmente porque sou mais velho do que tu. As pessoas esperam que eu seja superior. Além disso, já tenho uma certa reputação em Paris. Pareceria estranho que aparecesse com um maltrapilho italiano a reboque e o tratasse de igual para igual. Não que sejas um maltrapilho, claro – acrescentou rapidamente. – Mas é assim que as pessoas nos podem ver.

Mais uma vez, foi apenas o estilhaço de gelo no meu coração que me fez conter a raiva.

– Eu disse que não teria nenhum mestre.

– E não terás. Dividiremos os lucros entre os dois, isso está perfeitamente estabelecido. Eu não serei o teu mestre; simplesmente me chamarás mestre. Compreendes a distinção, não compreendes?

Com alguma relutância, assenti.

– Está bem.

– Óptimo. – Audiger olhou para a janela. – Mas o que dar ao rei? – disse, quase com os seus botões. – Isso é que é uma preocupação.

Enquanto adormecia, ocorreu-me que Audiger devia ter percebido mal o que eu dissera em Florença. Pensara que eu tinha dito que não queria ter nenhum mestre; mas o que eu dissera na realidade fora que não queria chamar mestre a nenhum homem, tinha quase a certeza disso. No entanto, aqui estava eu, a concordar em fazê-lo. Talvez Audiger se tivesse esquecido das palavras exactas do nosso acordo.

– Seria possível fazer um gelo de ervilhas?

Despertei, sobressaltado. A diligence tinha parado, mas apenas para os condutores se aliviarem. Audiger estava de pé à beira da estrada, junto da porta aberta, a urinar nos campos.

– O quê?

– Perguntei se era possível fazer um gelo de ervilhas – repetiu Audiger por cima do ombro. – Vê, estou a regar ervilhas neste preciso momento.

Olhei para fora da carruagem. Sob a luz brilhante da lua cheia vi um campo de ervilhas, as vagens verdes e gordas a oscilarem sob a brisa. O aroma a legumes frescos era, felizmente, mais forte do que o da urina do meu companheiro.

– O rei tem uma estranha paixão por todo o tipo de vegetais – disse Audiger. – Especialmente ervilhas. Todos os anos os seus cortesãos competem entre si para ver quem lhe traz a primeira colheita das suas propriedades… é o tipo de concurso que ele aprecia. E estas estão semanas adiantadas em relação às ervilhas em França. Estava a pensar se seria possível fazer um gelo com elas.

– Se queres dar ervilhas ao rei, porque não simplesmente colher algumas?

– Estarão murchas muito antes de chegarmos a Paris. Mesmo a diligence demora duas semanas.

– Mas podíamos congelá-las.

Audiger espreitou por detrás da porta da carruagem.

– O quê?

– Congelá-las – repeti. – Conservá-las em gelo.

Audiger olhou para mim.

– Isso é possível?

– Não só é possível, como é simples. Os persas há muito que sabem que o gelo conserva as frutas e as protege da decomposição. Com certeza que as ervilhas não serão diferentes.