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O meu corpo por um exército. É um negócio que quase todos os envolvidos considerariam uma pechincha.

CARLO

Um gelo, devidamente guardado, aguentará um mês sem se estragar.

O Livro dos Gelos

O esforço estava a custar-lhe, eu estava bem consciente disso. Nos bailes e bailados e jantares ela sorria e gracejava e ninguém pensaria que havia alguma coisa errada – a menos que a vissem depois de todas as carruagens terem partido e de o riso ter abandonado os seus olhos, tão abruptamente como uma vela a ser apagada.

– O que tenho de fazer para recuperar a boa vontade dele? – perguntou-me uma noite, fatigada, enquanto eu recolhia as taças do seu apartamento.

– Absolutamente nada.

– Pensa que é impossível?

– Pelo contrário… quero apenas dizer que o melhor que tem a fazer é não fazer nada. Creio que Carlos está dividido. Há uma parte dele que gostaria de parar de a desejar. Mas outra parte sabe que não conseguirá. Por isso está zangado, não consigo por ser virtuosa, mas com ele próprio, por se importar tanto. – Evitei os olhos dela enquanto falava. – Mais cedo ou mais tarde, essa batalha terminará e ele saberá então aquilo que sente.

A voz dela, quando falou, era suave.

– E o que é, Carlo? O que sentirá ele? Irá o rei amar-me, ou odiar-me?

Abanei a cabeça.

– Não a odiará.

– Como gostava que não fosse uma coisa nem outra – murmurou. – Oh, como queria um mundo sem todo este amor.

LOUISE

Passam quase duas semanas até ele voltar aos meus aposentos.

– Vossa Majestade – digo, com uma reverência.

– Oh, está aí – diz ele, como se eu tivesse estado fora; como se tivesse sido eu, e não ele, a evitar este momento. Estende o punho. – Tenho uma coisa para si.

– Não preciso de presentes, senhor.

– «Senhor», não. «Carlos». A menos que estejamos acompanhados, o que, felizmente, não é o caso.

– Carlos. – A palavra sai-me dos lábios com algum embaraço, devido à minha pronúncia francesa.

Ele sorri.

– A minha irmã também nunca o pronunciava bem.

Tento de novo.

– Não preciso de presentes… Carlos.

– Está melhor. Mas ainda é mais bonito quando o pronuncia mal. – Levanta a mão. – Aqui tem.

Mantém a mão fechada, pelo que sou obrigada a virá-la e a abrir-lhe os dedos, afastando-os um a um do presente. Um relógio de bolso, o mais pequeno que já vi, uma ostra de ouro reluzente.

– Abra-o.

Abro a tampa. É diferente de todos os relógios de bolso que já vi. Tem três ponteiros, um dos quais corre sobre o mostrador.

– Diz os segundos – explica ele, orgulhoso. – É uma mola dentro do mecanismo, mais apertada do que qualquer pêndulo. E veja atrás.

Viro-o. Tem uma inscrição: Não desperdices estas horas com arrependimentos. E uma data.

É o dia em que cheguei a Inglaterra.

– Foi o dia em que começou o meu calendário – diz ele, simplesmente.

Carlos quer mostrar-me o seu apartamento. Passamos pelo quarto real, onde ele nunca dorme, e entramos por uma porta quase escondida atrás de uma cortina. Do outro lado está uma sala de trabalho, não muito maior do que a de Madame, cheia de relógios. O barulho que fazem é como chuva, um aguaceiro ensurdecedor de tempo; segundos e minutos a tombarem em volta dos nossos ombros.

Ele vai buscar os seus preferidos – o relógio que diz as fases da Lua, o relógio de mesa que contém um carrossel de cavalos de prata minúsculos a perseguirem uma raposa. São feitos por um dos seus virtuosi, o seu bando de filósofos e eruditos. Tem muitos grupos, como começo a perceber. Gosta de passar de um para outro, mudando de papel ao fazê-lo: aqui o libertino, aqui o filósofo, aqui o estadista, mas sempre ávido por entretenimento, por diálogo, por entusiasmo. Sempre como um menino.

Certamente que é difícil de acreditar que, entre o seu irmão Jaime e ele, Carlos seja o mais velho. Ou que tem mais do dobro da minha idade. Contudo, um rei é jovem aos quarenta e dois anos, uma mulher é velha aos vinte.

É chamado para tratar de um assunto mas pede-me que espere. Quando chega a hora certa, uma dúzia de carrilhões toca, o som saltando de relógio para relógio.

Curiosa e um pouco entediada, inspecciono o que me rodeia. Há uma porta que dá para uma latrina almofadada. Outra divisão contém os seus químicos e máquinas. E depois há uma sala iluminada e quadrada, numa torre, forrada com painéis de madeira do chão até ao tecto.

Um dos painéis está entreaberto. Aproximo-me para ver me­lhor: tem dobradiças, como a porta de um armário.

Abro-o. Na parte de dentro, de modo a que ele possa escolher exibi-la ou não, está uma pintura. Uma mulher, completamente nua, reclinada sobre uma cama de almofadas e veludos. A sua pele clara parece brilhar, como o luar, contra os tecidos escuros e pesados. À sua volta há adereços teatrais, um cenário pintado. Cabelo ruivo, um sorriso malicioso.

A actriz.

Será que ele manda pintar todas as suas mulheres assim, pergunto-me? Abro outro painel. Outro corpo nu, com rosto altivo. Reconheço a mulher que falou comigo no baile do embaixador francês. E outra – uma mulher com o vestido enrolado por baixo dos seios, a sorrir descaradamente. Abro outro, depois outro… os painéis baloiçam e embatem suavemente uns contra os outros, como as páginas de um livro de madeira gigantesco.

Oiço vozes na outra sala. Rapidamente, volto a fechá-los todos, um a um, terminando com Nelly. Novamente escondida atrás dos lambrins, da madeira castanha e respeitável, para o prazer exclusivo do rei.

LOUISE

Ele dança comigo e sinto a urgência do seu desejo. Beija-me durante a dança, como os outros pares, e os seus lábios demoram-se um pouco mais do que deviam.

Quando tem de me soltar a mão para eu poder rodar para outro parceiro, sinto a sua relutância, os meus dedos a deslizarem entre os seus até que, com um suspiro, se vira.

No entanto, mantém a sua promessa. Nunca tenta fazer-me sentir como se não tivesse escolha.

Isso, mal ele o sabe, está a ser feito por terceiros. Colbert re­corda-me quase diariamente que estou a abusar da paciência não de um, mas de dois reis. Lady Arlington diz-me que tenho de agir, antes que Carlos se interesse por outra. Lorde Rochester fita-me com olhos cínicos e embriagados e declara que estou a jogar um jogo de astúcia.

– Não sabia que as cadelas francesas eram cães de caça tão espertos – diz.

E Carlos trata-me com tanta cortesia que só quando estou com ele é que não me sinto cercada.

Contudo, esta agitação por causa do seu filho deu-lhe algo novo com que se preocupar. Tal como me deu a mim, talvez, uma nova maneira de cair nas suas boas graças.

*

Trata-se de lorde Monmouth – o seu filho mais velho, ilegítimo, claro: fruto de uma união com uma mulher chamada Lucy Walters, durante os primeiros anos do seu exílio. Agora o rapaz tem vinte anos e é um estouvado.

No parlamento, recentemente, houve um debate sobre a angariação de dinheiro – há sempre debates sobre a angariação de dinheiro, para pagar as dívidas do rei. Alguém propôs que se podiam lançar impostos sobre os teatros. Um membro do partido da corte observou que os teatros davam muito prazer a Sua Majestade e deviam, portanto, estar isentos. A isto, um membro da facção parlamentar, um tal de John Coventry, respondeu com ar pensativo se seriam os teatros que davam grande prazer a Sua Majestade, ou aqueles que neles representavam – numa clara alusão à preferência do rei por actrizes.