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Depois ouvi um grito: O rei. Ergui os olhos. Uma procissão de uma dúzia de carruagens estava a descer o gelo, proveniente da direcção de Whitehall. Enquanto eu observava, pararam e a corte desembarcou, homens e mulheres que se espalharam sobre o gelo. Muitos calçavam patins por baixo das belas roupas e, quando começaram a deslizar, graciosos como dançarinos, a multidão aplaudiu. Vi Louise entre eles, a patinar de costas, num círculo, com o vestido de seda dourada a ondular. Depois o rei estendeu-lhe a mão e os dois aceleraram juntos em direcção à Grande Ponte, deixando todos os outros para trás, as pernas de ambos movendo-se em perfeita sintonia, o longo cabelo preto de Louise a esvoaçar atrás dela; como se fossem dois pássaros deslumbrantes, a voar rio abaixo.

Virei-me para a feira que, subitamente, me pareceu um pouco mais escura, um pouco mais fria, sem eles ali.

A próxima coisa de que me lembro é de acordar, em agonia, no meu quarto no Lion. Alguém me despira: quem quer que fosse tinha dobrado as minhas roupas muito bem ao lado da cama e até deixara as minhas botas do lado de fora do quarto para serem limpas. Sentei-me, alarmado, e rapidamente desejei não o ter feito: tinha uma dor de cabeça insuportável, como uma rocha a ser aberta pelo martelo de um pedreiro. Parecia que, afinal de contas, tinha sucumbido ao vício dos Ingleses e bebera de mais.

Com um gemido, desci até à sala de jantar. Percebi que as cozinhas estavam abertas – o cheiro a tartes pairava no ar, proveniente das traseiras da sala – mas não havia ninguém por perto e eu não estava em condições de gritar. Por fim, Rose, a mais inferior das criadas, trouxe-me o pequeno-almoço.

Demorei algum tempo a perceber que ela se sentara numa mesa próxima e estava a ver-me comer.

– Como se sente? – perguntou, com um sorriso que pretendia ser compreensivo.

Franzi a testa.

– Dói-me um pouco a cabeça.

– Não admira, se foi a primeira vez que experimentou a muda.

Então ela vira-me na noite anterior.

– Presumo que fiquei mudo? Entorpecido pela bebida?

Ela atirou a cabeça para trás e riu.

– O senhor? Mudo? Não. Deu-lhe para o outro lado. Arengou como um padre.

Escusado será dizer que não me recordava de nada disto.

– E sobre o que é que eu estava a… arengar?

– Não se lembra mesmo?

– Se me lembrasse – observei –, não precisaria de perguntar.

Ela acenou.

– Bem visto. Digamos apenas que a maior parte da conversa me passou ao lado. E da Mary também. Especialmente as partes em italiano. Bonito, e muito persuasivo, mas nada que se pudesse considerar compreensível.

Estranhei o uso da palavra «persuasivo». Pelo menos, ao que parecia, eu não tinha revelado nenhum dos meus segredos. Mais um motivo para jurar nunca mais tocar na bebida, se o estado da minha cabeça não me tivesse já decidido por esse caminho.

O que quer que tenha acontecido nessa noite, teve outra consequência imprevisível. Longe de ficarem horrorizados com a minha falta de controlo, os habituais do Red Lion pareceram considerá-lo evidência de que eu era agora, como diziam, «um dos seus».

– Ao princípio, pensámos que era um bocadinho snobe – confidenciou-me Mary, a outra criada. – Mas, afinal, é um bom tipo, não é?

Eu estava bastante dividido em relação a isso. Por um lado, sentia-me tentado a chamar a atenção para o facto de que, sendo o confeiteiro de Sua Majestade, dificilmente poderia ser um deles; por outro lado, estava contente por estas pessoas já não me considerarem um forasteiro, portanto decidi que o melhor a fazer seria aceitar a sua amizade no espírito em que me era oferecida.

Mary e Rose, em particular, adoravam trocar mexericos sobre a corte, e agora que eu – de alguma forma – lhes indicara que era mais acessível do que tinham tido motivos para acreditar até então, vinham frequentemente incomodar-me enquanto trabalhava.

– E lady Castlemaine? É tão bonita como dizem?

– Ainda não tive o prazer de ver essa senhora.

– E o rei? Como é ele?

– Sua Majestade é muito gracioso. E alto. É a sua característica mais distintiva: a altura.

– É verdade que lady Arlington tem cem vestidos?

– Não os contei pessoalmente. No entanto, em Versalhes, cem vestidos não seriam considerados demasiados para uma senhora verdadeiramente elegante.

Em particular, elas estavam fascinadas de forma inimaginável por Nell Gwynne – «a nossa Nell», como lhe chamavam. Eu podia olhá-las de lado quando ouvia esse nome, e oferecer a opinião de que a actriz era uma criatura grosseira e desinteressante, mas, para elas, isso era apenas parte do seu fascínio. O facto de Nell ter começado como uma meretriz vulgar – «uma puta dos carvoeiros», chamava-lhe Mary – tendo ascendido ao palco, à fama e, daí, à cama real, parecia-lhes uma espécie de conto de fadas, ainda mais pela forma como as origens sórdidas de Nell lhes faziam lembrar as suas próprias vidas.

– Eu fui uma menina das laranjas, como ela, mas no teatro do duque, não no do rei. Tinha onze anos quando um cavalheiro decidiu que queria descascar mais do que aquilo que pagara – disse Mary.

Mudei rapidamente de assunto, apesar de o desconforto ser todo da minha parte, não da dela.

Elas tinham ouvido falar de Louise de Keroualle, mas a impressão que haviam formado dela tinha na base um preconceito diferente: que, como francesa, fora enviada para a corte inglesa com o único propósito de enfeitiçar o seu rei. Todos os meus protestos de que isso não era verdade eram recebidos como uma descrença educada mas inabalável. Uma das raparigas até tinha um livro que reivindicava ser a biografia de Louise e, uma vez que não sabia ler, pedira-me para lhe descrever o conteúdo. Era, claro, mais lixo, e depois de dar uma vista de olhos recusei-me terminantemente a fazê-lo.

Havia mais mexericos e conversas às quais eu prestava pouca atenção; contudo, para minha surpresa, quando Robert Cassell apareceu numa das suas visitas regulares, foi nestes mexericos da ta­berna, e não nos meus progressos na feitura de um gelo mais suave, que pareceu mais interessado.

– Mais alguma coisa? – perguntou, debruçando-se sobre a mesa e fixando em mim o olhar vivo e militar. – E conversas sobre outras nações, por exemplo?

– Bom, estão bastante convencidos de que foram os Holandeses que atearam o Grande Incêndio.

– Estão? – perguntou, com um leve sorriso.

– Eu disse-lhes que é muito mais provável que Deus esteja a castigar o país pelo regicídio.

– Hum… – disse ele. – Penso que, por enquanto, talvez seja melhor guardar esse ponto de vista para si. Nos próximos meses, as opiniões vão tornar-se bastante acesas sobre temas como esse. Na verdade, por muitas razões, seria melhor que confidenciasse ter ouvido várias pessoas importantes na corte dizerem também que os Holandeses estiveram por trás do incêndio.

Uma pessoa que participava pouco nos mexericos era Hannah. Contudo, de forma talvez surpreendente, eu dava por mim a discutir com ela quase tanto como com as outras duas. Pois, se Rose e Mary eram demasiado crédulas, Hannah era demasiado desdenhosa.

– Hannah – chamavam-na elas quando ela passava –, anda ouvir. O signor Carlo está a falar-nos sobre a vez em que serviu taças de neve misturada com uma conserva de água de rosas à condessa de Sedburgh, num baile.

– Não conheço a condessa de Sedburgh – dizia Hannah, sem parar. – Por isso não estou muito interessada no que ela come.

– Mas ela é linda… – gritava Rose, mas era tarde de mais; Hannah já estava fora do alcance da sua voz. Parecia-me que ela era ainda mais seca com todos nós desde a noite da feira do gelo; por outro lado, o Inverno era a época mais movimentada do ano para as suas tartes, portanto podia simplesmente andar com pouco tempo.