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Depois houve a ocasião em que eu estava a repetir alguns comentários que o rei fizera, relativamente ao banquete para os cavaleiros da Jarreteira em Windsor, e o meu papel central nessas festividades.

– Então ele tem dinheiro suficiente para gastar em palácios e banquetes, mas não tem dinheiro para poços ou hospitais – disse Hannah. – E cada um desses tostões veio do dinheiro dos nossos impostos.

– Onde o rei gasta o tesouro público é assunto apenas para Sua Majestade e para os seus conselheiros – observei, calmamente. – Como podemos nós, com a nossa informação limitada, ter a presunção de questionar as decisões dos grandes homens?

Ela parou então – estacou abruptamente, na verdade, algo suficientemente raro para eu reparar.

– E, diga-me, o que torna uma pessoa grande e outra não? – inquiriu.

– O nascimento, as maneiras e o sangue – respondi de imediato. – Pode nem sempre gostar daqueles que Deus colocou acima de si, mas com certeza que não pode duvidar de que Ele tem os meios para o fazer. Tal como o rei tem direito a parte do respeito que é devido a Deus, de quem é representante, da mesma forma os seus cortesãos têm direito a parte do respeito que é devido aos anjos.

Talvez eu não me tivesse explicado muito bem, porque Hannah simplesmente atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada sarcástica.

– E suponho que se inclui a si próprio nisso? – perguntou, quando acabou de rir. – Porque, se o senhor é um anjo, eu sou o rabo de um francês.

Olhei para ela, espantado com esta nova animosidade. Tinha a certeza de que ela não podia estar a referir-se ao meu nascimento humilde: esse era um segredo vergonhoso ao qual eu nunca aludira. A menos que tivesse, de alguma forma, traído as minhas origens quando estava bêbado… Observei-a, tentando encontrar alguma pista na sua expressão. Mas ela já me virara costas e afastara-se.

CARLO

Para fazer um sorvete de nêsperas: leve a ferver um quilo de polpa de nêspera com uma chávena de açúcar e o sumo de um limão, mexendo sempre com uma colher ou vara. Ficará melhor se adicionar um ou dois copos de cordial feito de bagas de espinheiro-negro ou dos abrunhos selvagens que crescem em climas setentrionais.

O Livro dos Gelos

De todas as árvores do pomar, a nespereira deve ser a mais estranha. Na árvore, os frutos são duros e amargos. Contudo, se os deixarmos no Inverno, as geadas quebram a polpa dura. Só quando a pele fica castanha é que a polpa está suficientemente macia para se comer, com algo da suculência almiscarada de caça fumada, ou de queijo que foi envelhecido em caves húmidas. É um processo que sugere ao mesmo tempo amadurecimento e apodrecimento.

A primeira vez que eu falara com Louise fora numa pequena mata de nespereiras.

Fiz um gelo de nêsperas e adocei-o com um licor fragrante, levemente medicinal, feito de bagas de espinheiro-negro. Coloquei-o numa cama de neve fresca do campo e levei-lho.

*

Nos aposentos dela havia grande actividade. Uma parede fora derrubada, abrindo o espaço para as salas do lado. Os trabalhadores estavam a pintar as paredes com novos frescos e colunas trompe l’oeil. Outro pintor estava a fazer o retrato dela. E um bando de damas de companhia observava e coscuvilhava do outro lado da sala.

– Trouxe-lhe um gelo – disse, com uma vénia.

– Signor Demirco. – Virou-se para o pintor e disse: – Já retomamos o trabalho. – Ele pareceu furioso, mas pousou o pincel com um aceno da cabeça.

– Venha. – Conduziu-me para uma alcova privada.

– O que se passa? – perguntei, enquanto lhe entregava o gelo.

– Isto? Oh, estão a remodelar os meus aposentos. Ao que pare­ce, tenho de ter um quarto do tamanho de um salão de baile, para a minha ruelle matinal, quando ele me visita com os amigos. E uma sala de baile para quando ele quer dançar. – Ele, reparei. Já não era o rei, nem sequer Carlos.

O vestido dela estava salpicado com centenas de pérolas. Estava vestida para o pintor do retrato, claro, mas também mudara. Já não era uma rapariga, uma criança, mas sim uma senhora – uma grande dama de França, refinada e elegante.

Ou estariam estas diferenças não nela, mas na forma como eu a via, por causa dos adereços que a rodeavam – o vestido, as sedas, as damas de companhia, o pintor de retratos, os próprios aposentos sumptuosos?

– Como foi o seu Inverno? – perguntou ela. – Conseguiu o seu gelo?

Acenei afirmativamente.

– O suficiente para fornecer gelados à Europa inteira. E o seu? Como estão as relações com Sua Majestade?

– Oh, Carlo – suspirou ela.

– O que se passa?

– O rei está apaixonado por mim.

– E então? Já estava apaixonado por si antes de eu me ir embora.

– Mas agora parece quase… tresloucado. Como se estivesse em sofrimento. Lidei mal com ele. Agora estamos ambos encurralados. Ele não pode casar comigo; não suporta deixar-me partir; e nenhum de nós pode voltar para casa enquanto esta guerra não acontecer. O que hei-de fazer?

– O que desencadeou isto?

– A mulher do irmão dele, Anne Hyde, morreu.

– Eu soube. – Dizia-se que, no leito de morte, ela recusara o padre, dizendo que preferia morrer sem absolvição na Fé Verdadeira do que abençoada numa fé falsa. As pessoas com quem eu falara, na província, estavam mais convencidas do que nunca de que os Stuart eram católicos secretos.

– A questão é, com quem casará Jaime a seguir? Uma mulher jovem, diz ele, bonita e, claro, católica.

De súbito, percebi.

– A Louise?

Ela acenou.

– Ele falou com Carlos sobre o assunto, pelo menos. Houve uma discussão tão grande… Carlos pensou que eu o encorajara. Não é verdade, claro. Estava apenas a tentar obter o apoio dele para a guerra.

– Então o que aconteceu?

– Disse a ambos que nunca poderia aceitar.

Eu sabia o que isto devia ter significado para ela: recusar uma oferta de casamento do herdeiro do trono inglês.

– Não tive escolha – acrescentou. – O Colbert e o Arlington deixaram-no perfeitamente claro. Serei amante de Carlos, ou nada.

– E a guerra?

Ela encolheu os ombros.

– Receio que, agora, esteja mais longe que nunca. Consegui influenciá-lo em pequenas coisas, sim. Mas não nisso.

Ela parecia tão abatida, ali sentada, que tomei uma decisão súbita.

– Fuja comigo – disse-lhe. – Agora. Hoje mesmo. Apanharemos um barco para Espanha ou para a Sicília. Case comigo ou não, é consigo. Podíamos estar em Dover ao nascer do dia. Em Madrid dentro de uma semana. Os meus gelados são os melhores da Europa; os espanhóis são grandes apreciadores, nunca passaríamos fome…

Ela abanou a cabeça.

– Não – disse, baixinho. – Carlo, não faça isso. O rei ama-me.

– E ama-o a ele?

Ela abanou novamente a cabeça e percebei que não estava a responder-me, mas apenas a avisar-me para nunca mais lhe fazer essa pergunta.

Voltei ao Red Lion. Admito: parei noutra taberna pelo caminho, a primeira que encontrei, e bebi três canecas de cerveja forte.

Depois entrei no Lion à procura de uma mulher.

Podia ter sido qualquer uma delas. Por acaso, foi Hannah que encontrei nas escadas.

– Venha – disse, abruptamente. – Preciso dos seus serviços.

– Leite-creme para os seus gelos?

– Refiro-me aos seus outros serviços. Os serviços que presta a certos homens. Quanto cobra?

Ela fitou-me nos olhos por um momento. Estava sem dúvida a calcular que preço poderia levar-me.

– Um xelim – disse, por fim.

– Muito bem. Vamos para o meu quarto.