Ele encolheu os ombros.
– Se alguém perguntar, diga que foi Hooke que o inventou. É tudo o que eu, ou qualquer outra pessoa, poderia pedir.
Qual foi, então, o resultado de todas as nossas deliberações? Veio a verificar-se que não era nenhuma fórmula secreta, nenhum ingrediente mágico ou feitiço, mas simplesmente exactidão e equilíbrio. Descobrimos que o gelado é como um triângulo com três lados iguais: esses lados são a fruta, a mistura de açúcar ou leite-creme, e o mexer. Quando os três estavam em perfeita proporção, o gelado era tão suave e cremoso como manteiga acabada de bater.
Recordei as palavras de Hannah, sobre mais açúcar para solidificar o leite-creme. Na verdade, ela tinha razão, embora só pudesse ter sido um palpite de sorte, uma vez que nunca poderia compreender o processo como eu o compreendia agora.
– Terminámos – disse Boyle por fim, pousando a colher. – Cavalheiros, para o Garraway’s. Ouvi dizer que há notícias interessantes sobre um tratado de paz no Reno.
Fomos ao Garraway’s, onde se juntaram a nós um homem que inventara uma prensa de cidra mais eficiente e outro que fazia desenhos das perturbações no céu. A conversa virou-se então para a alquimia, e se haveria alguma diferença fundamental entre esta e o Novo Método. Hooke e Boyle diferiam neste ponto. Boyle, esse homem bom e amável, era da opinião de que Deus criara a Natureza deliberadamente misteriosa, enquanto Hooke – de quem eu não conseguia gostar, apesar da sua generosidade pessoal para comigo, pois era um indivíduo difícil e irritadiço – defendia que o universo não era mais do que um mecanismo, uma espécie de relógio gigante cujas engrenagens e objectivos estávamos agora apenas a começar a descobrir. Contudo, o que mais me intrigou foi que eles se envolveram num debate furioso, em que nenhum cedeu, por mais de meia hora; embora ambos tivessem dado muitos murros na mesa, nenhum esmurrou o outro, e cinco minutos depois de concordarem finalmente que nenhum deles podia provar a sua hipótese, estavam lado a lado a examinar um estranho escaravelho morto que alguém trouxera de Epsom, novamente os melhores amigos do mundo.
Fizemos espaço para a criada nos servir mais uma rodada de bebidas. A maioria estava a beber café, mas Boyle e eu bebíamos chocolate, por razões de saúde.
– Aí está um belo e elegante sabor para os seus gelos, Demirco – disse Kit Wren, virando-se para mim. – Um prato de gelado com sabor a café.
– Na verdade, seria muito fácil de preparar – respondi. – Os grãos fazem uma excelente infusão com água, portanto certamente que o fariam também com leite.
– Eu preferia chocolate – disse Boyle. – O café não me cai bem, quase tanto como aqui o Hooke. – Sorriu para mostrar a Hooke que não pretendia ofendê-lo. Menciono esta troca de palavras tanto para mostrar a boa vontade com que estes cavalheiros partilhavam as suas ideias, como a origem de duas das minhas receitas mais curiosas. Sei que o público pensa que estas confecções em particular provam que sou ligeiramente louco, e houve muitas piadas e comentários adversos quando elas se tornaram conhecidas; tudo o que posso dizer é que aqueles que desdenham da sua estranheza nunca as provaram, e que, além de serem requintadas, são extraordinariamente boas.
Em breve chegou a hora de eles partirem para uma reunião da sua Sociedade e, para meu grande prazer, perguntaram-me se queria acompanhá-los, como seu convidado. Tenho de dizer que não compreendi muito do que se discutiu nessa noite. Houve um debate sobre se o ar opaco ou nebuloso era mais pesado do que o ar limpo; Hooke mostrou-nos alguns desenhos muito belos de flocos de neve, que apanhara no feltro do seu chapéu novo e observara com o microscópio; Henshaw leu uma carta sobre a dissecação de um testículo de arganaz, e houve uma discussão prolongada sobre o porquê de uma porta, que não empena no Verão, empenar por vezes no Inverno. Wren descreveu uma forma de fazer uma chaminé cheirar bem e debateram um trabalho em curso. Por fim, levaram a cabo uma experiência, criada por Hooke, para soprar ar para os pulmões de um peixe; para minha surpresa, o próprio rei esteve presente nesta parte do serão.
– Signor Demirco – disse, quando me viu. – Não sabia que era filósofo.
– Senhor, alguns dos membros da vossa Sociedade têm estado a ajudar-me a criar um gelado melhor.
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Presumo que se trata do prato para o meu banquete? O que será dedicado a mademoiselle de Keroualle?
Hesitei… e depois acenei afirmativamente.
– Na verdade, este será um prato bem indicado para dedicar a essa senhora. Pois é um prato, não apenas de um sabor, mas que pode ter muitos sabores, conforme o que escolhermos colocar nele. Um dia pode ser morangos, noutro pêssegos e noutro nozes ou posset ou chá. Só a textura é sempre a mesma: frio e duro na taça, mas derrete-se na língua como o mais suave dos cremes…
– Um gelo que é duro na taça mas que se derrete na boca? – disse ele com um sorriso. – Na verdade, signor, parece muito apropriado. Estou ansioso por o provar.
Mais tarde, enquanto saíamos, manifestei a Boyle a minha surpresa por ver o rei naquela companhia.
– Oh, ele vem com bastante frequência – garantiu-me Boyle. Estava agora acompanhado pela sobrinha; ela viera ao seu encontro, explicou, pois nos serões da Sociedade ele tinha tendência a esquecer que estava enfermo e a passar a noite toda em debate filosófico, a menos que ela o fosse buscar para ir para casa. – Todos os dias, independentemente dos assuntos de Estado com que tem de lidar, Sua Majestade executa pelo menos uma experiência. Na verdade, é um químico exímio.
A liberdade de discurso deu-me coragem para dizer algo em que andava a pensar muito, ultimamente.
– Antes de eu vir para este país – disse –, disseram-me que Carlos era um governante efeminado e de vontade fraca. Eu próprio tenho visto como ele se rodeia de imbecis bêbados e ministros interesseiros. No entanto, parece-me ser um homem encantador e, na verdade, muito inteligente.
– O Rochester tem a liberdade de ser ofensivo, e o Harvey tem a liberdade de dissecar o cérebro humano – disse Boyle. – Talvez, no fundo, sejam quase a mesma coisa. – Pareceu pensativo. – Conheci Galileu, uma vez. Eu era um jovem, andava a estudar pelas universidades da Europa, e ele estava em prisão domiciliária em Florença. Fui visitá-lo mas, nessa altura, ele já tinha perdido o juízo, sem dúvida graças, em grande medida, à forma como fora tratado pelas autoridades. A Inglaterra tem muitos defeitos, mas isso, pelo menos, nunca poderia acontecer aqui. Não me parece que seja coincidência que tenhamos entre nós eruditos como Halley, Harvey e outros que tais.
– Para não falar em Boyle – murmurou a sobrinha.
Ele fez um gesto impaciente.
– Podia ter feito algum trabalho útil, se não fosse a minha doença.
– É demasiado modesto, tio. A sua bomba de vácuo…
– Um começo, nada mais.
Tínhamos chegado junto da carruagem dele e o lacaio contornou-a para o ajudar a subir.
– Obrigado, Edwards – agradeceu ele, instalando-se com um suspiro. – Não fui sempre assim tão frágil – disse-me. – Um ataque apopléctico. Aquilo a que chamam uma carícia da mão de Deus. Embora eu sempre tivesse imaginado que a Sua carícia seria mais meiga do que isto. Sempre quer os tais panfletos?
Demorei um instante a recordar de que panfletos estava ele a falar: no princípio da noite, oferecera-se para me dar uma cópia das suas publicações relativamente ao frio.
– Com certeza.
– Muito bem… eu mando entregar-lhe. Depois de os ler, talvez possamos retomar as nossas conversas.
– Gostaria muito – disse-lhe. – Há muita coisa que gostaria de compreender melhor sobre aquilo que faço. É bem possível que seja preciso alguém como o senhor, um filósofo natural, para as deslindar.
Ele acenou.
– No meu estado actual, é precisamente o tipo de investigação que devo empreender. Deixaremos os segredos do cosmos para outros durante alguns meses, talvez, e comeremos gelados. O que dizes, Elizabeth?