Elizabeth estava a abrir uma manta sobre os joelhos dele.
– Não me parece que seja assim tão insignificante andar a chapinhar em água gelada.
Recuou e reparei que a rapariga sorria de forma familiar ao lacaio, Edwards. Para minha surpresa, ele sorriu também, de forma igualmente familiar. Era evidente para mim que existia algum tipo de intimidade romântica entre eles, algo que, noutra ocasião, me teria chocado. No entanto, ouvira e vira tantas coisas estranhas nessa noite que dei por mim a pensar, simplesmente: «Porque não?»
Depois de Boyle partir, caminhei de novo em direcção ao rio, imerso em pensamentos – em grande medida, sobre aquilo que ele dissera. Pois era certamente verdade que havia algo que todas as pessoas neste país tinham em comum, desde o ilustre Robert Boyle até Hannah Crowe. Não era exactamente orgulho, embora fosse algo de que eles se orgulhavam; não era teimosia, embora fossem certamente capazes de ser teimosos em relação a isso, quando queriam. Era antes uma preocupação feroz por chegar à verdade de cada questão; um amor pelo debate e uma recusa em aceitar o ponto de vista de outra pessoa sem primeiro o testar vigorosamente contra o seu, tal como uma moeda era mordida, dobrada e finalmente atirada ao chão para testar a sua qualidade, antes de ser aceite com um «Muito bem» resmungado. Para um povo tão conflituoso e libertário, talvez um governo por debate não fosse, afinal de contas, tão má ideia quanto isso.
Eu tinha reparado, quando comecei a ler livros e jornais em inglês, que sempre que escreviam a palavra que indicava a pessoa que estava a dar a sua opinião – eu, «I» – usavam habitualmente uma letra maiúscula, como que para salientar a sua importância. Isto, claro, não era algo que um francês ou um italiano alguma vez fizesse com je ou me. Ao princípio, parecera-me apenas mais um exemplo, quase engraçado, da presunção das pessoas comuns, cada uma das quais considerava a sua opinião tão boa como a de qualquer outro.
Tinham-me dito que havia uma moda, entre eles, de escrever diários: não necessariamente para publicação, mas apenas para dar forma duradoura aos seus pensamentos fugazes. Também isso me parecera cómico. Contudo, talvez tivesse sido demasiado precipitado a tirar estas conclusões. Talvez a opinião de uma pessoa comum pudesse realmente ter tanto interesse como o parecer de grandes homens: talvez, na verdade, a única diferença entre os grandes homens e os outros fosse que os grandes homens se davam ao trabalho de formar estas opiniões… Percebi que tinha a cabeça a zumbir, mas não sabia se era do efeito de tanto café ou de tantas ideias novas.
CARLO
Gelado de morangos brancos: o sabor delicado destes frutos não precisa de adornos, excepto, talvez, uma pitada de pimenta branca.
O Livro dos Gelos
O grande banquete de Carlos, o arranque do seu Verão de festividades, teria lugar no dia festivo de São Jorge, o santo patrono de Inglaterra. A ironia, claro, não passou despercebida àqueles que sabiam quem era realmente o patrono do rei, ou que país estava na prática a pagar as suas celebrações.
Quase um mês antes da festa, mudei-me para Windsor de modo a poder supervisionar os preparativos. Os construtores ainda estavam a trabalhar no Grande Salão novo, enquanto os carpinteiros faziam as últimas mesas às quais se sentariam os convidados do rei. Os despenseiros estavam também ocupados, a desembrulhar milhares de peças de loiça que não eram usadas desde a coroação. Só o candelabro precisava de uma equipa de oito pessoas e duas semanas para ser limpo.
Não havia casas de gelo, mas requisitei uma cave e mandei trazer o gelo directamente das grutas onde o guardara. Primeiro, comecei o trabalho de fazer as esculturas de gelo e pus trabalhadores a preparar as grandes camas de gelo esmagado onde seria servida a comida fria.
Contudo, ainda não tinha decidido exactamente que gelado serviria na mesa do rei.
Nas semanas depois do meu encontro com os virtuosi, e de ter aperfeiçoado a técnica de fazer um gelo perfeitamente suave, fizera experiências com todos os sabores à face da Terra. Assim que um novo fruto ou vegetal aparecia nos mercados, eu congelava-o. Espargos, tupinambor, aipo vermelho, até couves… Os rabanetes revelaram-se surpreendentemente bons, bem como espinafres de Primavera; as azedas tinham os seus méritos, também. Fui às docas e comprei frutas estranhas aos barcos regressados das colónias. Fiz gelados de pimentos, de melões, de mangas e de frutas tão feias que nem sequer tinham nome.
Nenhum deles era o certo. Não para um prato criado em honra dela.
Percorri os laranjais e plantações de ananases das propriedades dos grandes nobres, com uma carte blanche do rei no bolso. Mais do que um ananás foi arrancado da árvore, partido, cheirado e posto de lado.
Elias disse-me:
– Há um homem em Sonning que, dizem, cultiva morangos brancos. São grandes como ovos de gaivota e absolutamente doces.
– Não me parece que isso seja possível.
– Ele é marinheiro. Trouxe as plantas da América.
Não acreditei, mas viajei até Sonning, de qualquer maneira, para verificar pessoalmente. E descobri que Elias tinha razão: havia um velho marinheiro, com as botas cobertas de lama, que cultivava morangueiros num canteiro elevado, aquecido pelos respiradouros de uma lareira. Enquanto sopesava os frutos nas mãos calejadas, murmurava a cada planta, acariciando-a e pedindo-lhe desculpa pela perda dos seus filhos. Era louco, mas os seus morangos eram extraordinários. Os frutos eram completamente desprovidos de cor: primeiro, pensei que não estavam maduros, mas depois ele deu-me um para provar e percebi que, não só era doce, como era completamente diferente dos morangos normais – branco como nata, carregado de aroma e sem nenhuma da acidez habitual da maioria dos morangos. Cada baga estava aninhada debaixo de uma folha coberta de espinhos muito finos, como uma groselheira ou uma urtiga: picavam ligeiramente quando a manuseávamos.
Recordei-me que havia um velho costume que ditava que todos os animais brancos ou albinos pertenciam ao rei. O cervo ou veado branco era o antigo símbolo dos reis; os cisnes eram reservados para a mesa real, enquanto uma carruagem puxada por cavalos brancos era sinal de que o ocupante estava ligado à família real.
Louise, também: aquela pele branca, tão branca, reservada apenas para o rei.
Trouxe todos os morangos que o homem tinha e dividi-os em duas partes. Uma delas seria servida simples; com a outra, faria um gelado, com um pouco de pimenta branca, para prazer exclusivo do rei.
O dia do banquete chegou – ou melhor, o primeiro dia, uma vez que os festejos iriam durar quase uma semana. Bandeiras esvoaçavam em todas as esquinas e torreões do castelo; tocavam-se fanfarras e, para onde quer que olhássemos, havia soldados em desfiles cerimoniais. Fizeram-se exibições de equitação para entreter os convidados e havia uma estátua que cantava. Não era Versalhes – o castelo era demasiado castelo para ser completamente elegante e a atmosfera aproximava-se mais de uma feira rural do que das cerimónias formais e coreografadas de França – mas a majestade da ocasião era indiscutível. Os frescos no tecto do Grande Salão podiam ainda não estar secos, mas esse tecto era vasto e estava pintado, e, à medida que os mil convidados nobres entravam pelas portas trabalhadas, olhavam para cima e admiravam-no.
E depois Louise fez a sua entrada.
O vestido que escolhera para esse dia era admirável. Assentava-lhe como uma luva e, na verdade, a sua cintura era tão estreita que um par de mãos enluvadas quase a conseguiriam contornar. No tecido, estava bordado um padrão delicado em forma de diamantes; a saia e o corpete eram separados, como era o novo estilo em França; a saia tinha uma racha de lado, de modo a que, quando ela caminhava, era possível apanhar um vislumbre da sua perna esguia entre as pregas do tecido, que estava apanhado de um lado e preso com um broche. Apenas o seu cabelo – aquela cabeleira desobediente de caracóis escuros – não tinha nada de francês: não estava apanhado ao alto debaixo de um chapéu, mas simplesmente dividido ao meio. Era como se ela estivesse a dizer: De hoje em diante, serei eu o árbitro por aqui. Copiarei o que quiser, e todos me copiarão.