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Na verdade, eu já o fizera. As ruas em volta de Whitehall estavam muitas vezes bloqueadas por multidões descontentes; quase não passava um dia em que não ouvisse uma ou outra pedra atingir a madeira da minha carruagem e, por mais do que uma vez, tivera de dar meia-volta e voltar para trás. Contratei dois criados corpulentos para viajarem do lado de fora, mas eram mais para as aparências do que por uma questão de segurança. Eu sabia que, num confronto a sério, eles dificilmente salvariam a minha vida à custa da sua.

Seria portanto de pensar que a atmosfera na corte estava tensa. No entanto, passava-se o oposto. Era como se a declaração tivesse introduzido um novo estado de espírito, de prazer e descontracção. Agora que finalmente tinha Louise, Carlos andava despreocupado; e, tal como ela sucumbira a ele, assim a corte sucumbia agora a ela. Todas as senhoras da alta sociedade usavam o cabelo au naturel, com risco ao meio; todos os vestidos foram modificados para terem uma racha de lado. Apareceram mais franceses em Londres. Le Nôtre veio de Versalhes para remodelar o Parque de St. James e estremeceu ao ver o canal à holandesa. Um alfaiate chamado Sourceau chegou para vestir o rei, monsieur de Pontac estava a cargo dos vinhos, enquanto os vestidos de Louise eram feitos por uma modista chamada Desborde. Até ouvi algumas das damas de companhia mais novas a falarem com um falso sotaque, como se – como Louise – o inglês não fosse a sua língua mãe. Não gostavam dela; na verdade, acho que a odiavam e se ressentiam dela em igual medida, mas Louise tinha a protecção do rei e isso era tudo o que importava.

E eu estava lá. Movia-me entre eles, distribuindo os meus cordiais e o meu granite, quase como se estivesse de novo em Versalhes. Estava presente nos bailes, nos jogos de cartas, nos jantares e nas representações e bailes de máscaras privados. Estava lá – Deus me ajude – enquanto o rei e a sua nova amante se divertiam: até estava no apartamento dela quando se deitavam juntos.

O rei era um homem físico: o exercício causava-lhe calor e, quando tinha calor, gostava de pedir algo que o refrescasse. Todos os dias eu fazia, para os amantes, cordiais frescos de sabugueiro, alfazema, borragem ou goivo. Fazia-lhes infusões doces de hortelã-pimenta e gengibre, derramadas sobre punhados de gelo esmagado. Fazia-lhes gelados de limão e alperce, de marmelo e de maçã, de amora silvestre e de baunilha e de figo. Levava-lhes taças de limonada feita com limões espremidos na hora, adoçada com mel de dente-de-leão e refrescada com neve prensada. Levava os meus gelos em travessas de prata até ao quarto dela, com a sua cama francesa trabalhada; atrás das cortinas fechadas, até à própria cama, até aos lençóis revolvidos. Sentia o cheiro dele nela; sentia o cheiro dela nele; servia-os a ambos, com um sorriso insondável, e ela agradecia-me com um sorriso igualmente dissimulado.

Só por uma vez, nessas primeiras semanas, consegui falar a sós com ela. O rei fora chamado – na maior parte das vezes, recusava-se a ouvir os pedidos de atenção aos assuntos de Estado dos seus ministros. Contudo, se fossem suficientemente persistentes, lá ia de mau humor ler apressadamente uma pilha de papéis ou assistir a uma reunião do conselho, embora raramente ficasse até ao fim. Desta vez, deixara a cama dela precisamente quando eu estava a chegar, ainda a tempo de tirar um copo de sumo de pêssego gelado da bandeja que eu trazia e de lhe dizer por cima do ombro:

– Venho já… não saia daí. – Mal se deu ao trabalho de abotoar as roupas.

Por um momento, nenhum de nós falou.

– Então – disse eu, por fim. – É aquilo que esperava?

– Isto? – Ela encolheu os ombros. – Isto seria o meu dever de qualquer maneira, quer o fizesse como esposa ou como amante. Pelo menos faço-o com alguém para quem eu não sou apenas um dever. Torna mais fácil fingir.

– Fingir? Então é só isso que faz?

Não devia ter perguntado – era como tocar numa ferida: não conseguimos evitar, apesar de sabermos que não é boa ideia.

– Às vezes sim – disse ela suavemente –, e às vezes não.

– Mas ama-o, agora?

– Não penso nisto como amor ou prazer – respondeu ela. – Sei apenas que estou em posição de alcançar aquilo que vim fazer a Inglaterra. Será amor? Será prazer? Seja o que for, estou-lhe grata por isso.

A minha própria posição na corte, claro, subira novamente a par da dela. Não havia nada mais francês do que gelos; logo, não havia nada mais na moda. Desde Newmarket, os meus serviços tinham-se tornado tão indispensáveis para qualquer grande reunião como a presença da própria Louise de Keroualle.

Contudo, havia um prato que eu nunca fornecia. Servia cordiais, granite, sorvetes e até gelos de leite; mas, a menos que o rei estivesse presente, não havia gelado. O gelado, conforme criado por mim próprio e pelos virtuosi, era o prato real; a menos que o próprio rei o oferecesse a um convidado, mais ninguém podia comê-lo.

Houve muitos que tentaram. Perdi a conta ao número de vezes que me pediram para preparar um pouco, «por curiosidade»; a minha resposta era sempre um franzir de sobrolho e a frase:

– Receio que tal não será possível.

Alguns, claro, não admitiam ser envergonhados desta forma. Lorde Rochester entrou certa manhã no Red Lion e atirou uma bolsa para cima do balcão da copa onde eu estava a trabalhar.

– Quero provar o gelado de framboesa que o rei comeu ontem à noite.

– Receio que tal não será possível.

– Ele disse que foi a melhor coisa que já provou.

– É verdade.

Apontou para a bolsa com um gesto impaciente.

– Tem aí vinte pistoles. Tire o que quiser.

Peguei na bolsa e devolvi-lha.

– Já tenho tudo o que preciso.

Ele fitou-me. Os seus olhos, posso acrescentar, eram como os olhos de um lagarto, totalmente desprovidos de humanidade, e mesmo àquela hora já tresandava a vinho.

– Está a desafiar-me, signor De hirto? – murmurou.

Devolvi o olhar, bastante calmo.

– Parece-me que talvez o senhor esteja a desafiar o rei.

Passado um momento ele assentiu.

– Pensa que porque a sua amiga francesa tem a atenção do rei, pessoas como o senhor estão protegidas de pessoas como eu. E, de certa forma, é verdade. Mas lembre-se de uma coisa: ela tem a atenção do rei porque o tem preso pela braguilha. Quando ele se cansar disso, a atenção também se acaba. E o que será então do pobre signor De hirto?

Outros eram mais circunspectos. Vi Chiffinch, o intendente, pegar numa taça para a passar ao rei. No meio de floreados elaborados, o manuseamento de guardanapos e por aí fora, reparei que quando foi apresentada, momentos depois, a taça tinha significativamente menos gelado do que antes, apesar de o rosto de Chiffinch continuar impassível.

A famosa Barbara Villiers, duquesa de Cleveland, anterior amante de Carlos, mandou-me chamar a sua casa – ou melhor, ao seu palácio, pois Carlos dera-lhe Nonsuch, uma das melhores residências reais, como paga pelos seus serviços. Ostensivamente, a nossa reunião era para discutir os cordiais que eu podia fornecer para um baile; mas rapidamente se tornou claro que aquilo que ela realmente queria era gelado e que, em troca, tencionava fornecer-me os mesmos favores de que o rei em tempos gozara. Quando deixei claro que não era tão fácil de comprar, ela perdeu a cabeça – nunca tinha visto uma fúria assim; parecia uma mulher possuída, arremessando todos os objectos a que conseguiu deitar a mão, com o belo rosto contorcido de raiva.

Foi isto – o facto de apenas Carlos e Louise comerem os meus gelados – que me deu uma ideia na qual, provavelmente, nunca devia ter pensado duas vezes.

Estava a trabalhar na minha copa ao final da tarde, quando não havia mais ninguém por perto. Olhei para a alcova de Hannah e reparei que estava deserta.