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O Livro dos Gelos

O orgulho de Inglaterra navegou com a sua frota, sob o coman­do do duque de Iorque, uma armada de sessenta navios e vinte mil homens. O plano era que se juntassem à frota francesa em Solebay, Suffolk, para, juntos, bloquearem os portos holandeses.

No entanto, os Holandeses, apesar de a sua marinha ser muito inferior, fizeram uma ofensiva. Enquanto a armada aliada ainda estava ancorada, os Holandeses apareceram no horizonte com o vento por trás. Os aliados separaram-se de imediato em dois, os navios franceses virando as velas e navegando para sul. Os Ingleses, entretanto, não tiveram alternativa a não ser ficar e lutar. Mais de mil canhões pulverizaram-se uns aos outros durante quase um dia inteiro antes de os Holandeses recuarem.

Foi posto a circular que a ausência dos Franceses da batalha fora apenas um simples erro, devido a sinalização deficiente, mas a maioria dos ingleses preferia uma explicação diferente: a França quisera que a Inglaterra apanhasse com o pior do embate. Era o que sempre tinham temido. A Inglaterra estava a ser atraída para esta guerra com a intenção deliberada de enfraquecer o país, de preparar o caminho para uma invasão católica.

Os recrutadores percorriam agora as ruas, alistando à força para a marinha todos os jovens saudáveis que encontravam. Os impostos foram aumentados e a ordem só era mantida graças a um acentuado aumento de flagelações e enforcamentos públicos.

Eu fiz um gelado de espargos de Primavera, acondicionado num molde em forma de espargo, feito de modo a que uma ponta de cada talo fosse branca e a outra verde, como o legume verdadeiro. Carlos, que adorava tudo o que não era aquilo que parecia, declarou-o o melhor gelo que eu já servira. Gostava de o servir aos seus convidados, para ver o espanto deles.

Louise, grávida, chamou-me com outro objectivo em mente.

– Pode fazer-me alguma coisa? Ando com desejos de pepinos doces e gelado cremoso.

Suspirei.

– É bem sabido que as mulheres, durante a gravidez, comem alimentos estranhos. Verei o que posso fazer.

Fiz-lhe um gelado de leite-creme fresco e cremoso, aromatizado com sementes de baunilha; a baunilha serviria para contrabalançar pelo menos a acidez dos pepinos. Mesmo assim, ela não ficou satisfeita.

– Quer deixar-me gorda – queixou-se, enquanto comia. – Gorda e deformada.

– É o bebé que está a fazer isso. Perderá a gordura depois de ele nascer.

– Nenhum homem em Londres olhará para mim, muito menos o rei. Pareço uma porca prenha. Ele começou a chamar-me «Bucha».

– Bucha?

– Ou «Buchinha». Pelos vistos, tenho as bochechas gordas.

– Nesse caso, parece que a gravidez não diminuiu o afecto que ele sente por si.

– Belisca-me as bochechas, admira a minha barriga e depois desaparece e vai passar a noite com a actriz. O afecto não me serve de nada. O afecto não compensa a perfídia da frota francesa. Não preciso de afecto. Preciso de desejo. Preciso de paixão.

– Pelo contrário. Qualquer homem pode estar apaixonado; se existe também afecto, isso sugere que os sentimentos serão duradouros. Tenha paciência. Quando o bebé nascer, ele voltará rapidamente para a sua cama.

Noutra ocasião ela disse:

– Tenho sido demasiado ingénua. Se quero mantê-lo no futuro, tenho de aprender alguns truques.

– Truques? – perguntei, apesar de saber exactamente ao que ela se referia.

– Antes, confiei na minha inocência, como me sugeriu. Mas agora já não posso ser inocente, tenho de ser astuta.

– E como tenciona aprender esses truques?

– O Carlo tem de me ensinar, claro. – Viu a minha expressão. – Não assim. Tem de me explicar: onde devo ir, como devo deitar-me, o que devo dizer. Já sei o básico, será mais fácil compreender o que está a dizer.

Eu não podia recusar-lhe nada. Assim, subimos para a cama dela, com a porta fechada e o ferrolho corrido para nos protegermos de espiões entre as suas damas de companhia, e ela ensaiou com esforço as várias posturas do amor, de acordo com as minhas instruções. Estávamos ambos completamente vestidos: ela estava pesa­da e grávida; naturalmente, não havia uma única centelha de paixão na ocasião ou na atitude dela, até que, por fim, eu não consegui deixar de acrescentar:

– Claro que, com ele, terá de ser também afectuosa.

– Afectuosa?

– Sabe… ardente. Sorrisos. Palavras de carinho murmuradas.

– Isso também? – Ela parecia perplexa. – Não basta fazer tudo isto? Tenho de fingir que estou a gostar?

– Claro. O seu ardor é o maior elogio que pode fazer-lhe. – Tirei um pepino da travessa. – Imagine que isto é o rei. – Mergulhei-o no prato de gelado. – Imagine que ele está coberto do sabor que mais deseja… pense que o deseja mais do que qualquer outro alimento que desejou em toda a sua gravidez. – Passei-lhe o pepino. – Experimente.

Ela assim fez: deitou a língua de fora e lambeu em volta da ponta do pepino, olhou para mim para ver se estava a fazer bem e, por um momento, os seus olhos verdes encheram-se de uma tal luxúria inconfundível que eu não consegui respirar.

Depois, com a boca ainda cheia de gelado, desatou a rir. Encostou as costas da mão à boca enquanto engolia. Quando conseguiu falar, disse:

– Portanto, a julgar pela sua cara, aquela era uma expressão adequada de desejo avassalador?

– Sim – respondi, com voz rouca. – Em que estava a pensar?

– Estava a pensar no gelado, que em breve desapareceria todo. E depois senti-me um bocadinho séria, revirei-o na boca e desapareceu mesmo.

– Faça isso – aconselhei, com um suspiro. – Faça precisamente isso e ele pensará que o adora.

No Lion, chamei Hannah ao meu quarto.

– Suponho que sabe alguns truques? – perguntei, secamente.

– Truques?

– Adornos. Extras. Como fazem em França.

– Sei fazer um fricassé, se é a isso que se refere.

– Sabe muito bem que não é.

– Sim, sei. Mas queria ver se conseguia fazê-lo sorrir – disse ela, misteriosamente.

– Pago-lhe mais – resmunguei.

– É muito generoso, mas receio não poder ajudá-lo. Se quer truques franceses, terá de encontrar uma francesa. – Hesitou. – Talvez já a tenha encontrado.

Olhei para ela.

– O que quer dizer?

– Apenas que o que anda a fazer na corte, seja lá o que for, não parece deixá-lo muito feliz.

– Não é nada da sua conta.

– Claro que não – disse ela, com expressão ilegível. – Nesse caso, é apenas o habitual, presumo?

– Sim. O habitual.

O habitual, levado a cabo no silêncio habitual. O tilintar de moedas habitual. As habituais lágrimas nas minhas faces, antes do esquecimento breve do sono.

Quando acordei descobri, para minha surpresa, que passava das três horas. Aproximei-me da janela e fiquei ali sentado muito tempo, no parapeito, a olhar para as pessoas que tratavam da sua vida na rua lá em baixo.

Depois vi Hannah, a sair do pátio da estalagem. Provavelmente não teria reparado nela – trazia uma capa escura, com capuz puxado sobre o cabelo – mas quando se virou para olhar para um lado e para o outro apanhei um vislumbre nítido do seu perfil.

Na mão, bem apertada, levava uma bolsa.

Alguma coisa, não sei dizer o quê, despertou a minha curiosidade quanto ao que ela iria fazer. Enfiei um casaco e desci as escadas a correr. Tinha visto a direcção que ela tomara e não tive dificuldade em apanhá-la, até estar a caminhar dez passos atrás dela.

Reparei na quantidade de pessoas que a cumprimentavam ao passar por ela, não de forma efusiva mas com um aceno ou um pequeno gesto de reconhecimento. E depois havia algumas que paravam e lhe apertavam a mão.

Lembrei-me das palavras de Cassell. Recusam-se a curvar-se perante qualquer homem, uma vez que dizem que todos fomos criados iguais.