O rei abriu as mãos para nos abranger a ambos.
– La Quintinie e Demirco. Falem um com o outro. Estou ansioso por provar os frutos da vossa polinização.
*
E assim aprendi as virtudes da simplicidade e enviei ao rei sorbetti gelados da fruta mais recente da estação, adornados apenas com um pouco de açúcar. Descobri que, embora o processo de congelamento pudesse de facto roubar algum do aroma da fruta, tinha também o efeito de concentrar o sabor, capturando a sua essência em alguns cristais doces na ponta de uma colher. Isto foi antes de la Quintinie ter completado a vasta potager du roi, a maior da Europa, que o próprio Luís considerava a parte mais bela da sua propriedade. Mas os pomares, hortas e estufas que já tinha ao seu dispor produziam resultados extraordinários. Luís adorava pêras, por exemplo, mais do que qualquer outro fruto, e assim la Quintinie dedicou-se a cultivar as melhores variedades de França, além de criar variedades novas para agradar ao rei. Globulares, redondas, pendentes, esguias; verdes, amarelas, acastanhadas, vermelhas; de casca áspera ou lisa; com nomes extravagantes como Bom Chretien d’Hiver, Petit Blanquet, Sucrée Verte, ou a preferida do rei entre todas, a doce e perfumada Rousselet de Reims – ele cultivava-as a todas e dava-me os preciosos frutos para fazer com eles o que muito bem entendesse. Uma vez, enviei ao rei uma simples tábua de madeira contendo apenas meia dúzia de sorvetes, cada um feito de uma variedade diferente de pêra, culminando numa pêra sanguinello, ou de sangue, de um rosa vivo, que fora suavemente assada apenas para caramelizar a casca; ele ficou tão encantado que pôs de lado os assuntos da corte e convocou Audiger e eu à sala de audiências, onde toda a corte nos recebeu com uma ovação pelas nossas proezas. Noutra ocasião, fiz-lhe uma taça de cerejas que, quando examinadas atentamente, eram vinte gelados de creme de cereja individuais que eu congelara um a um, num molde; enquanto os meus sorvetes de mandarina – servidos dentro da casca de uma mandarina recém-colhida, com a casca aparentemente intacta, como um barco de brinquedo dentro de uma garrafa – eram uma maravilha que a corte discutiu durante dias.
Por vezes, o rei organizava grandes divertissements, alguns para mil convidados, em que eram construídos de papier mâché teatros e grutas quase tão grandes como o próprio palácio, para a estreia de pantomimas e comédies-ballets especialmente encomendados para a ocasião. O facto de estes edifícios elaborados serem para destruir depois de uma única noite de entretenimento era apenas outro aspecto da sua magnificência. Nestas ocasiões, criávamos gelos que nunca mais eram repetidos em honra de um convidado especial, da mesma forma que um cozinheiro pode dar a um molho novo o nome do cliente que o inspirou. Audiger levava muito a sério a ordem implícita do rei para superar o limonadier do cardeal Mazarin, e até subornava criados nas casas dos outros grandes nobres para nos contarem o que andavam a fazer os seus confeiteiros. Foi, de facto, um dia feliz, quando ouvimos dizer que o famoso Signor Morelli se vira reduzido a copiar a nossa ideia de um sorvete de groselha amarga, servido numa colher de prata reluzente que, quando colocada na boca, revelava ser feita de açúcar.
No entanto, para Audiger, o nosso sucesso estava sempre misturado com frustração. A fundação da corporação – o seu grande sonho – estava atolada em burocracia e, a cada passo, exigia mais um suborno para avançar. O intendente do rei, monsieur le Tellier, não previa quaisquer dificuldades, mas levou o assunto ao Conselho Privado. O Conselho não podia considerar a criação da corporação sem um relatório do escrivão principal. O escrivão principal levou o assunto ao chanceler. O chanceler só se envolveria se a medida tivesse o apoio de um nobre. O nobre que Audiger escolheu, infelizmente, andava a dormir com uma dama que não era a sua esposa: não se tratava propriamente de uma ocorrência invulgar, mas a esposa era, por azar, neta do chanceler… E por aí fora, sempre às voltas, sem que ninguém mostrasse grande vontade de conceder a patente que criaria a corporação, enquanto cada oportunidade de lucro, progresso, intriga e corrupção não estivesse devidamente esgotada.
– Mas porquê tanto interesse? – perguntei por fim, quando Audiger estava novamente furioso por causa do mais recente revés. – Porque é uma corporação tão importante, se estamos a fazer os gelos que queremos?
– Não compreendeste nada? – inquiriu Audiger. Aproximou-se abruptamente de mim, enquanto eu despejava leite perfumado com cravo-da-índia num molde de estanho. – Quem é que pensas que paga por este equipamento? – perguntou, furioso. – Pelas tuas roupas? Pelo teu belo chapéu? Por estas instalações? Quem é que dá de comer aos nossos aprendizes? Quem paga os nossos subornos? Quem compra estes ingredientes caros que usas de forma tão liberal? – Enfiou os dedos numa caixa de cravos-da-índia e atirou um punhado ao ar. – Nunca fizeste essas perguntas a ti próprio?
Olhei para ele, estupefacto, enquanto os cravos-da-índia caíam no chão. O que ele dissera era absolutamente verdade. Eu nunca pensara sequer vagamente no aspecto financeiro daquilo que fazíamos. É a única liberdade que o escravo partilha com o cavalheiro; não se preocupar com dinheiro.
– Mas… o rei não nos recompensa?
Audiger soltou uma risada trocista.
– Às vezes. Mas nunca a tempo e horas, e nunca o suficiente. Sabe que a moeda em que nos paga é a sua protecção, não ouro. Já gastei quase mil livres neste empreendimento… tudo o que tinha. E, a menos que consigamos a corporação… a menos que tenhamos outros homens a pagarem-nos para se juntarem a ela… a menos que possamos cobrar às pessoas para aceitarmos os seus filhos como aprendizes e depois lhes vendermos o direito de se tornarem por sua vez mestres… estarei na bancarrota dentro de seis meses.
– Audiger, lamento muito. Não fazia ideia. Tens toda a razão… tenho sido negligente.
– Bom – disse Audiger, o mau humor evaporando-se tão depressa como aparecera –, não importa. Deixei que te concentrasses nos gelos e não no negócio, uma vez que é essa a tua verdadeira vocação. Porém, se de vez em quando me achares um pouco irascível, já sabes porquê. Se falharmos, perderei tudo.
Foi uma pequena discussão, rapidamente esquecida, mas teve uma consequência importante. Daí em diante, eu comecei a interessar-me pelo aspecto financeiro da nossa actividade. Comecei a compreender a curiosa economia da nossa profissão, na qual não eram os ingredientes que custavam muito dinheiro, nem o próprio gelo, mas os aprestos que os acompanhavam: as nossas roupas de corte, os nossos empregados de uniforme, as belas taças e colheres de ouro para que um rei ou um nobre pudesse apreciar o nosso trabalho. Ahmad tivera razão em relação a isto, pelo menos: era a nossa mestria que nos fazia valer as somas exorbitantes que cobrávamos, tal como um cantor é pago pela beleza da sua voz, ou um pintor pela sua habilidade e não pelo custo das tintas. E era por isso, claro, que tínhamos de manter sempre o nosso conhecimento secreto: assim que fosse partilhado por outros, deixaria de ter valor. Com isto em mente, persuadi Audiger de que devíamos cobrar ainda mais pelas nossas criações. O rei encorajava a extravagância nos seus cortesãos: se Luís elogiava um sorvete, ou um gelo feito com algum ingrediente novo e elegante como jasmim, amora ou hortelã, mais cedo ou mais tarde todos os cortesãos dignos desse nome teriam de cerrar os dentes e pagar valores exorbitantes para poderem ter o prazer, mais cedo ou mais tarde, de concordar com o rei que sim, era realmente delicioso. Seguindo este plano, fomos acumulando lentamente riqueza, além de privilégio, os nossos casacos foram ficando mais ricos, os nossos botões passaram a ser feitos de pérolas em vez de osso – embora isso não tenha impedido Audiger de continuar, ainda assim, a suspirar pela sua corporação.