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Creio que ele recordava sempre o dia da sua restauração: entrar em Londres à frente de vinte mil soldados; as pessoas a chorarem de alegria, as ruas pejadas de flores, os sinos das igrejas a tocarem e as fontes a jorrarem vinho.

Na escuridão das caves frias, os homens começaram a fazer as árvores, animais, fontes e outras decorações de gelo que eu pedira. Dryden e Marvell foram contratados para escrever as pantominas. Kit Wren suspendeu os planos da Catedral de São Paulo para poder desenhar um grande pavilhão de gelo, uma catedral de prazer cuja fachada trabalhada e cintilante ultrapassaria qualquer maravilha que o país já vira. Hooke e Boyle, esses homens engenhosos, conceberam um sistema de canos que transportariam água do mar gelada por baixo da estrutura, de modo a que não derretesse. E o próprio Carlos escolheu o local – Barn Elms, a cinco quilómetros de Londres, onde uma curva do rio daria a impressão de uma planície congelada.

Era impossível manter uma ideia destas em segredo: na verdade, Louise não queria que fosse segredo – esta festa era, como ela dissera, uma espécie de coroação, e acreditava que o ódio do povo por ela podia ser transformado em apoio.

– Será um circo – disse –, e a populaça adora o circo.

Mandou que a semana fosse declarada de festa e que os mastros fossem enfeitados. O próprio Luís XIV enviou uma carruagem de vidro, para que Carlos e ela pudessem chegar com pompa e circunstância.

– E faça-nos algo especial – disse-me ela. – Um gelado particular, em honra de Sua Majestade, tal como já fez um para mim.

Olhando para trás agora, essa Primavera foi uma das épocas mais felizes que vivi em Inglaterra. Estava com Louise quase todos os dias, a planear os detalhes do baile. Estava envolvido num grande empreendimento que sabia que consolidaria o meu nome. Dominara a arte de fazer gelados a tal ponto que, provavelmente, não tinha igual no mundo inteiro. Se a paz entre França e Holanda fosse negociada, havia mesmo a possibilidade de, um dia, ela e eu termos liberdade de regressar a França.

*

A notícia de que Rochester fora banido da corte em nada perturbou o meu bom humor.

– Ele escreveu uma sátira que foi longe de mais, até para o rei – contou-me Louise.

– Qual era o assunto?

– A impotência do rei.

– Percebo que o rei não quisesse deixar uma calúnia dessas sem punição.

– Pelo contrário. – Olhou em volta para se certificar de que ninguém nos ouvia e disse, baixinho: – O Rochester já fez piadas parecidas antes e nunca foi banido. A diferença é que, desta vez, é verdade.

– O rei não consegue funcionar?

– Só raramente.

– Com certeza que isso deve facilitar as coisas para si, não?

– Não exactamente. – Fez uma careta. – Ele não quer admiti-lo, por isso tenta… E quanto mais tenta, mais duro é. Ou não, na verdade.

– Mas é apenas consigo?

– Aparentemente, não. Espere aqui, vou buscar o poema. Deixaram uma cópia debaixo da minha porta, como de costume. – Abriu o banquinho da música e encontrou-o.

Era o lixo habitual, mas havia uma secção em particular que me fez suster a respiração.

Nisto acreditariam, se eu tivesse tempo para contar,

O muito que custa à pobre e esforçada Nelly,

Que usa mãos, dedos, boca e coxas,

Para conseguir erguer o membro de que tanto gosta.

– Até o Rochester percebeu que, desta vez, fora longe de mais… não pretendia que o rei visse isto. Deu-lho por engano, juntamente com outro poema. Mas, claro, agora que foi banido da corte, as pessoas andam a dizer que deve ser verdade.

– Isso afectará a sua posição?

– Não vejo porquê. Ele depende demasiado de mim para me dispensar agora.

– Estou certo de que o Arlington terá dito o mesmo, em tempos – avisei. – E o Clifford, o Clarendon, o Buckingham e todos os outros ministros que ele dispensou ao longo dos anos.

– Não se preocupe, sei o que estou a fazer.

Louise tinha razão, até certo ponto: tinha agora as mãos firmemente fechadas sobre todas as alavancas do poder. No entanto, isso não impediu os seus inimigos de fazerem uma última tentativa para a destronar. Enquanto planeávamos a ocasião que celebraria a sua ascendência, aqueles que ela derrubara estavam a conspirar. Sabiam que não conseguiriam vencê-la sozinhos; precisavam de um campeão, e encontraram-no na encantadora pessoa da irmã de Olympe de Soisson, Hortense Mancini, duquesa de Mazarin.

«A duquesa de Mazarin é uma dessas belas romanas que não possuem qualquer beleza de boneca e em quem a natureza pura triunfa sobre todas as artes do coquetismo. Os pintores não conseguem dizer qual a cor dos seus olhos: não são azuis, nem cinzentos, nem pretos, nem castanhos, nem verdes. Nem são lânguidos nem apaixonados, como se exigissem amor ou o demonstrassem. Parecem apenas que ela é iluminada pelo amor do sol. A sua tez é levemente tingida, e contudo quente e fresca. É tão harmoniosa que, embora morena, parece de uma brancura deslumbrante. O seu cabelo negro ergue-se em ondas fortes sobre a testa, como se se orgulhasse de cobrir e adornar cabeça tão esplêndida. Nunca usa perfumes.»

César de Saint-Réal, Memories de la Duchesse Mazarin

LOUISE

É Nell quem me alerta primeiro, quando aparece na corte, um dia, toda vestida de preto. À espera de uma repetição da piada do Cã da Tartária, não digo nada.

– Por quem está de luto, Nell? – pergunta alguém por fim, dando-lhe a deixa.

– Por ninguém – diz ela, naquele seu sotaque nasal característico. – Estou de luto pelas ambições de madame Carwell, que morreram e foram enterradas, agora que a duquesa de Mazarin chegou.

Arrebito as orelhas ao ouvi-lo – não os disparates de Nell, mas o título. Mazarin… já ouvi esse nome antes, um mexerico qualquer dos meus dias em França.

E depois lembro-me. Algo que Madame disse uma vez, quando falava sobre o irmão.

Ele apaixonou-se por uma beleza italiana chamada Hortense Mancini, mas foi nos dias do seu exílio e o tio dela, o cardeal, considerou que ele era um candidato demasiado fraco. Portanto agora está casado com Catarina de Bragança e Hortense anda a escandalizar toda a Europa como duquesa Mazarin…

Um amor que ele não conseguira alcançar. Uma velha paixão. Muito inteligente, penso. Pergunto-me qual dos meus inimigos a terá trazido para Inglaterra. Estou disposta a apostar todas as minhas consideráveis pensões em como não aconteceu por acaso.

Claro que estou certa. Algumas perguntas discretas feitas pelas pessoas que estão do meu lado, e rapidamente se torna evidente o que está de facto a acontecer.

Mazarin deixou o marido e desbaratou todo o seu dinheiro. Desde então, tem andado a viver à conta de vários amantes ricos – de ambos os sexos, dizem – em várias partes da Europa; agora, depois de Montagu lhe dizer que talvez haja uma vaga em Inglaterra para a posição de amante do rei, foi enviada para cá às custas dele. Ela tem um grande ódio pela França: acha que Luís devia ter obrigado o marido a devolver-lhe o dote.

Sei tudo isto antes de a conhecer. Estou preparada para uma mulher astuta – sabendo que ela é irmã de Olympe de Soissons, suponho que estou à espera de uma coisinha roliça, bonita e maliciosa.

Céus, como uma pessoa se pode enganar.

Vejo-a pela primeira vez a caminhar no Parque de St. James, ao nascer do dia, com Anne Fitzroy ao seu lado, a condessa de Sussex, de quinze anos de idade. Veste roupas de homem, mal-arranjadas: tem duas espadas casualmente presas debaixo do braço e na outra mão leva máscaras de esgrima. Quando se aproxima, vejo-a melhor e quase fico paralisada.