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Lívido, apoiado ao muro, eu mal sabia se o cheiro que me sufocava vinha do canto escuro do pátio, se das imundícies que borbulhavam da boca da Mariana, como de um cano de esgoto rebentado. Limpei o suor, murmurei, a desfalecer:

— Está bom Mariana, obrigadinho; eu verei; vá com Deus...

Cheguei à casa tão sombrio, tão murcho, que a Titi perguntou-me, com um risinho, se eu «malhara abaixo da égua».

— Da égua?... Não, Titi, credo! Estive na Igreja da Graça...

— E que vens tão enfiado, assim com as pernas moles... E então o Senhor hoje estava bonito?

— Ai, Titi, estava rico!... Mas não sei por que, pareceu-me tão tristinho, tão tristinho... Até eu disse ao Padre Eugênio: «O Eugeninho, o Senhor hoje tem desgosto!» E disse-me ele: «Que quer você, amigo? E que vê por esse mundo tanta patifaria!» E olhe que vê, Titi! Vê muita ingratidão, muita falsidade, muita traição!

Rugia, enfurecido; e cerrara o punho como para o deixar cair, punidor e terrível, sobre a vasta perfídia humana. Mas contive-me, abotoei devagar a quinzena, recalquei um soluço.

— Pois é verdade, Titi... Fez-me tanta impressão aquela tristeza do Senhor, que fiquei assim um bocado amarfanhado... E de mais a mais tenho tido um desgosto; está um condiscípulo meu muito mal, coitadinho, a espichar...

E outra vez, como diante do Justino (aproveitando reminiscências do Xavier e da Rua da Fé), estirei a carcaça de um condiscípulo sobre a podridão de uma enxerga. Disse as bacias de sangue, disse a falta de caldos... Que miséria, Titi, que miséria! E então um moço, tão respeitador das cousas santas, que escrevia tão bem na Nação!...

— Desgraças — murmurou a tia Patrocínio, meneando as agulhas da meia.

— E verdade, desgraças, Titi. Ora, como ele não tem família e a gente da casa é desleixada, nós os condiscípulos é que vamos por turnos servir-lhe de enfermeiros. Hoje toca-me a mim. E queria então que a Titi me desse licença para eu ficar fora, até cerca das duas horas... Depois vem outro rapaz, muito instruído, que é deputado.

A tia Patrocínio permitiu; e até se ofereceu para pedir ao patriarca São José que fosse preparando ao meu condiscípulo uma morte sonolenta e ditosa...

— Isso é que era um grande favor, Titi! Ele chama-se Macieira...

O Macieira vesgo. E para São José saber.

Toda a noite vagueei pela cidade, adormecida na moleza do luar de julho. E por cada rua me acompanharam sempre, flutuantes e transparentes, duas figuras, uma em camisa, outra de capa à espanhola, enroscadas, beijando-se furiosamente, e só desligando os beijos pisados para rirem alto de mim e para me chamarem carola.

Cheguei ao Rossio quando batia uma hora no relógio do Carmo. Ainda fumei um cigarro, indeciso, por debaixo das árvores. Depois voltei os passos para a casa da Adélia, vagaroso, e com medo. Na sua janela vi uma luz enlanguescida e dormente. Agarrei a grossa aldraba da porta, mas hesitei com terror da certeza que vinha buscar, terminante e irreparável... Meu Deus! Talvez a Mariana, por vingança, caluniasse a minha Adélia! Ainda na véspera ela me chamara riquinho, com tanto ardor! Não seria mais sensato e mais proveitoso acreditar nela, tolerar-lhe um fugitivo transporte pelo Senhor Adelino, e continuar a receber egoístamente o meu beijinho na orelha?

Mas então à idéia lacerante de que ela também beijava na orelha o Senhor Adelino, e que o Senhor Adelino também dizia ai! ai! como eu — assaltou-me o desejo ferino de a matar, com desprezo e a murros, ali, nesses degraus onde tantas vezes arrulhara a suavidade dos nossos adeuses. E bati na porta com um punho bestial como se fosse já sobre o seu frágil, ingrato peito.

Senti correr desabridamente o fecho da vidraça. Ela surgiu em camisa, com os seus belos cabelos revoltos:

— Quem é o bruto?

Sou eu, abre.

Reconheceu-me, a luz dentro desapareceu; e foi como se aquela torcida de candeeiro, apagando-se, deixasse também a minha alma em escuridão, fria para sempre e vazia. Senti-me regeladamente Só, viúvo, sem ocupação e sem lar. Do meio da rua olhava as janelas negras, e murmurava: «ai, que eu rebento!»

Outra vez a camisa da Adélia alvejou na varanda.

— Não posso abrir, que ceei tarde e estou com sono!

— Abre! — gritei erguendo os braços desesperadamente. — Abre ou nunca mais cá volto!...

— Pois à fava, e recados à tia.

— Fica-te, bêbeda!

Tendo-lhe atirado, com uma pedrada, este urro severo, desci a rua muito teso, muito digno. Mas à esquina alui de dor, para cima de um portal, a soluçar, escoado em pranto, delido.

Pesada foi então ao meu coração a lenta melancolia dos dias de estio... Tendo contado à Titi que andava a escrever dous artigos, piamente destinados ao Almanaque da Imaculada Conceição para 1878, encerrava-me no quarto, toda a manhã, em quanto faiscavam ao sol as pedras da minha varanda. Aí, arrastando as chinelas sobre o soalho regado, remoía, entre suspiros, recordações da Adélia; ou diante do espelho contemplava o lugar macio da orelha em que ela costumava dar-me o beijo... Depois sentia um ruído de vidraça, e o seu pérfido, e seu afrontoso brado «à fava!» Então, perdido, esguedelhado, machucava o travesseiro com os murros que não podia vibrar ao peito magro do Senhor Adelino.

à tardinha, quando refrescava, ia espalhar para a Baixa. Mas cada janela aberta às aragens da tarde, cada cortina de cassa engomada me lembrava a intimidade da alcovinha da Adélia; num simples par de meias, esticado na vitrina de uma loja, eu revia com saudade a perfeição da sua perna; tudo o que era luminoso me sugeria o seu olhar; e até o sorvete de morango, no Martinho, me fazia repassar nos lábios o adocicado e gostoso sabor dos seus beijos.

à noite, depois do chá, refugiava-me no oratório, como numa fortaleza de santidade, embebia os meus olhos no corpo de ouro de Jesus, pregado na sua linda cruz de pau preto. Mas então o brilho fulvo do metal precioso ia, pouco a pouco, embaciando, tomava uma alva cor de carne, quente e tenra; a magreza de Messias triste, mostrando os ossos, arredondava-se em formas divinamente cheias e belas; por entre a coroa de espinhos, desenrolavam-se lascivos anéis de cabelos crespos e negros; no peito, sobre as duas chagas, levantavam-se, rijos, direitos, dous esplêndidos seios de mulher, com um botãozinho de rosa na ponta; e era ela, a minha Adélia, que assim estava no alto da cruz, nua, soberba, risonha, vitoriosa, profanando o altar, com os braços abertos para mim!

Eu não via nisto uma tentação do demônio; antes me parecia uma graça do Senhor. Comecei mesmo a misturar aos textos das minhas rezas as queixas do meu amor. O céu é talvez grato; e esses inumeráveis santos, a quem eu prodigalizara novenas e coroinhas, desejariam talvez recompensar a minha amabilidade, restituindo-me as carícias que me roubara o homem cruel da capa à espanhola. Pus mais flores sobre a cômoda diante de Nossa Senhora do Patrocínio, contei-lhe as angustias do meu coração. Por trás do límpido vidro do seu caixilho, com os olhos baixos e magoados, ela foi a confidente do tormento da minha carne; e todas as noites, em ceroulas, antes de me deitar, eu lhe segredava, com ardor.

— Ó minha querida Senhora do Patrocínio, faze que a Adelinha goste outra vez de mim!

Depois utilizei o valimento da Titi com os santos seus amigos, o amorosíssimo e perdoador São José, São Luís Gonzaga, tão benévolo para a juventude. Pedia-lhe que fizesse uma petição por certa necessidade minha, secreta e toda pura. Ela acedia, com alacridade; e eu, espreitando pelo reposteiro do oratório, regalava-me de ver a rígida senhora, de joelhos, contas na mão, em súplicas aos patriarcas castíssimos, para que a Adélia me desse outra vez a beijoquinha na orelha.