Uma noite, cedo, fui experimentar se o céu escutara tão valiosas preces. Cheguei à porta da Adélia; e bati, tremendo todo, uma argoladinha humilde. O Senhor Adelino assomou à janela, em mangas de camisa.
— Sou eu, Senhor Adelino — murmurei abjetamente e tirando o chapéu. — Queria falar à Adeliazinha.
Ele rosnou para dentro, para a alcova, o meu nome. Creio mesmo que disse o carola. E lá do fundo, dentre os cortinados, onde eu a pressentia toda desalinhada e formosa, a minha Adélia gritou com furor:
— Atira-lhe para cima dos lombos o balde da água suja!
Fugi.
No fim de setembro, o Rinchão chegou de Paris; e um domingo, à noitinha, à volta da novena de São Caetano, entrando no Martinho, encontrei-o, rodeado de rapazes, contando ruidosamente os seus feitos de amor e de gentil audácia em Paris. Tristonho, puxei um banco e fiquei a ouvir o Rinchão. Com uma ferradura de rubis na gravata, o monóculo pendente de uma fita larga, uma rosa amarela no peito, o Rinchão impressionava, quando por entre o fumo do charuto esboçava traços do seu prestígio:
«Uma noite no Café de la Paix, estando eu a cear com a Cora, com a Valtesse, e com um rapaz muito chic, um príncipe...» O que o Rinchão tinha visto! o que o Rinchão tinha gozado! Uma condessa italiana, delirante, parente do Papa, e chamada Popotte amara-o, levara-o aos Campos Elísios na sua vitória — cujo velho brasão eram dous chavelhos encruzados. Jantara em restaurantes onde a luz vinha de serpentinas de ouro, e os criados, macilentos e graves, lhe chamavam respeitosamente Mr. le Comte. E o Alcázar, com festões de gás entre as árvores, e a Paulina cantando, de braços nus, o Chouriço de Marselha — revelara-lhe a verdade, a grandeza da civilização.
— Viste Vítor Hugo? -— perguntou um rapaz de lunetas pretas, que roía as unhas.
— Não, nunca andava cá na roda chic!
Toda essa semana, então, a idéia de ver Paris brilhou incessantemente no meu espírito, tentadora e cheia de suaves promessas... E era menos o apetite desses gozos do orgulho e da carne, com que se abarrotara o Rinchão, que a ansiedade de deixar Lisboa, onde igrejas e lojas claro rio e claro céu, só me lembravam a Adélia, o homem amargo de capa à espanhola, o beijo na orelha perdido para sempre... Ah! se a Titi abrisse a sua bolsa de seda verde, me deixasse mergulhar dentro as mãos, colher ouro, e partir para Paris!..
Mas, para a senhora D. Patrocínio, Paris era uma região ascorosa, cheia de mentira, cheia de gula. onde um povo sem santos, com as mãos maculadas do sangue dos seus arcebispos, está perpetuamente, ou brilhe o sol, ou luza o gás, cometendo uma relaxação. Como ousaria eu mostrar à Titi o desejo imodesto de visitar esse lugar de sujidade e de treva moral?...
Logo no domingo, porém, jantando no Campo de Santana os amigos diletos, aconteceu falar-se, ao cozido, de um sábio condiscípulo do Padre Casimiro, que recentemente deixara a quietação da sua cela no Varatojo, para ir esposar, entre foguetes, a trabalhosa Sé de Lamego. O nosso modesto Casimiro não compreendia esta cobiça de uma mitra, cravejada de pedras vãs; para ele, a plenitude de uma vida eclesiástica era estar assim aos sessenta anos, são e sereno, sem saudades e sem temores, comendo o arrozinho do forno da senhora D. Patrocínio das Neves...
— Porque deixe-me dizer-lhe, minha respeitável senhora, que este seu arroz está um primor!... E a ambição de ter sempre um arroz destes, e amigos que o apreciem, parece-me a mais legítima e a melhor para uma alma justa...
E assim se veio a discursar das acertadas ambições que, sem agravo do Senhor, cada um podia nutrir no seu coração. A do tabelião Justino era uma quintazinha no Minho, com roseiras e com parreiras, onde ele pudesse acabar a velhice, em mangas de camisa, e quietinho.
— Olhe, Justino — disse a Titi — uma cousa que lhe havia de fazer falta era a sua missa na Conceição Velha... Quando a gente se acostuma a uma missinha, não há outra que console... A mim, se me tirassem a de Santana, parece-me que começava a definhar...
Era o Padre Pinheiro que a celebrava; a Titi, enternecida, colocou-lhe no prato outra asa de galinha; e Padre Pinheiro revelou também a ambição que o pungia. Era elevada e santa. Queria ver o Papa restaurado nesse trono forte e fecundo, em que resplandecera Leão X...
— Se ao menos houvesse mais caridade com ele! — exclamou a Titi. — Mas o Santíssimo Padre, o vigariozinho de Nosso Senhor, assim numa masmorra, em farrapos, sobre palha... É de Caifases, é de judeus!
Bebeu um gole da sua água morna, e recolheu-se ao retiro da sua alma — a rezar a Ave-Maria que sempre ofertava pela saúde do Pontífice e pelo termo do seu cativeiro.
O Doutor Margaride consolou-a. Não acreditava que o Pontífice dormisse sobre palhas. Viajantes esclarecidos afiançavam-lhe até que o Santo Padre, querendo, podia ter carruagem.
— Não é tudo; está longe de ser tudo o que compete a quem usa a tiara; mas uma carruagem, minha senhora, é uma grandíssima comodidade...
Então o nosso Casimiro, risonho, desejou saber (já que todos patenteavam as suas ambições) qual era a do douto, do eminente Doutor Margaride.
— Diga lá a sua, Doutor Margaride diga lá a sua! — clamaram todos, com afeto.
Ele sorria, grave.
— Deixe-me Vossa Excelência primeiro, D. Patrocínio, minha senhora, servir-me dessa língua guisada, que marcha para nós e que me parece preciosa.
Depois de fornecido, o venerável magistrado confessou que apetecia ser par do Reino. Não por alarde de honras, nem pelo luxo da farda; mas para defender o princípio sacro da autoridade...
— Só por isto — acrescentou com energia. — Porque desejava também, antes de morrer, poder dar, se Vossa Excelência, D. Patrocínio, me permite a expressão, uma cacheirada mortal no ateísmo e na anarquia. E dava-lha!
Todos declararam fervorosamente o Doutor Margaride digno desses fastígios sociais. Ele agradeceu, seriíssimo. Depois volveu para mim a face majestosa e lívida:
— E o nosso Teodorico? O nosso Teodorico ainda não nos disse qual era a sua ambição.
Corei; e Paris logo rebrilhou ao fundo do meu desejo, com as suas serpentinas de ouro, as suas condessas primas dos Papas, as espumas do seu champagne — fascinante, embriagante, e adormentando toda a dor... Mas baixei os olhos; e afirmei que só aspirava a rezar minhas coroas, ao lado da Titi, com proveito e com descanso...
O Doutor Margaride, porém, pousara o talher, insistia. Não lhe parecia um desapego de Deus, nem uma ingratidão com a Titi, que eu, inteligente, saudável, bom cavaleiro e bacharel, nutrisse uma honesta cobiça...
Nutro! — exclamei então decidido como aquele que arremessa um dardo. — Nutro, Doutor Margaride, Gostava muito de ver Paris.
— Cruzes! — gritou a senhora D. Patrocínio, horrorizada. — Ir a Paris!...
— Para ver as igrejas, Titi!
— Não é necessário ir tão longe para ver bonitas igrejas — replicou ela, rispidamente. — E lá em festas com órgão, e um Santíssimo armado com luxo, e uma rica procissão na rua, e boas vozes, e respeito, imagens de dar gosto, ninguém bate cá os nossos portugueses!...
Calei-me, esmagado. E o esclarecido Doutor Margaride aplaudiu o patriotismo eclesiástico da Titi. Decerto, não era numa república sem Deus que se deviam procurar as magnificências do culto...
— Não, minha senhora, lá para saborear cousas grandiosas da nossa santa religião, se eu tivesse vagares, não era a Paris que ia... Sabe Vossa Excelência onde eu ia, senhora D. Maria do Patrocínio?
— O nosso doutor — lembrou o Padre Pinheiro — corria direito a Roma...
— Upa, Padre Pinheiro! Upa, minha cara senhora!
Upa? Nem o bom Pinheiro nem a Titi compreendiam o que houvesse de superior a Roma pontifical! O Doutor Margaride então ergueu solenemente as sobrancelhas, densas e negras como ébano.
— Ia à Terra Santa, D. Patrocínio! Ia à Palestina, minha senhora! Ia ver Jerusalém e o Jordão! Queria eu também estar um momento, de pé, sobre o Gólgota, como Chateaubriand, com o meu chapéu na mão, a meditar, a embeber-me, a dizer «salve!» E havia de trazer apontamentos, minha senhora, havia de publicar impressões históricas. Ora aí tem Vossa Excelência onde eu ia... Ia a Sião!