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— Egito! Egito! Eu te saúdo, negro Egito! E que me seja em ti propício o teu Deus Ftá, Deus das Letras, Deus da História, inspirador da obra de arte e da obra de verdade!...

Através deste zumbido científico, eu sentia-me envolvido num bafo morno como o de uma estufa, amolecedoramente tocado de aromas de sândalo e rosa. No cais faiscante, entre fardos de lã, estirava-se, banal e sujo, o barracão da alfândega. Mas além as pombas brancas voavam em torno aos minaretes brancos; o céu deslumbrava. Cercado de severas palmeiras, um lânguido palácio dormia a beira da água; e ao longe perdiam-se os areais da antiga Líbia, esbatidos numa poeirada quente, livre, e da cor de um leão.

Amei logo esta terra de indolência, de sonho e de luz. E saltando para a caleche forrada de chita, que nos ia levar ao Hotel das Pirâmides, invoquei as divindades, como o ilustrado doutor de Bonn:

— Egito, Egito! Eu te saúdo, negro Egito! E que me seja propício...

— Não! Que vos seja propícia, D. Raposo, Ísis, a vaca amorosa! — acudiu o eruditíssimo homem, risonho, e abraçado à minha chapeleira.

Não compreendi, mas venerei. Eu conhecera Topsius em Malta, numa fresca manhã, estando a comprar violetas a uma ramalheteira que tinha já nos olhos grandes um langor muçulmano; ele andava medindo consideradamente com o seu guarda-sol as paredes marciais e monásticas do palácio do grão-mestre.

Persuadido que era um dever espiritual e doutoral, nestas terras do Levante, cheias de história, medir os monumentos da antigüidade, tirei o meu lenço e fui-o gravemente passeando, esticado como um côvado, sobre as austeras cantarias...Topsius dardejou-me logo, por cima dos óculos de ouro, um olhar desconfiado e ciumento. Mas tranquilizado, decerto, pela minha face jucunda e material, pelas minhas luvas almiscaradas, pelo meu fútil raminho de violetas, ergueu cortesmente de sobre o longo cabelo, corredio e cor de milho, o seu bonezinho de seda preta. Eu saudei com o meu capacete de cortiça; e comunicamos. Disse-lhe o meu nome, a minha pátria, os santos motivos que me levavam a Jerusalém. Ele contou-me que nascera na gloriosa Alemanha; e ia também à Judeia, depois à Galiléia, numa peregrinação científica, colher notas para a sua formidável obra, a História dos Herodes. Mas demorava-se em Alexandria a amontoar os pesados materiais de outro livro monumental, a História dos Lágidas... Porque estas duas turbulentas famílias, os Herodes e os Lágidas, eram propriedade histórica do doutíssimo Topsius.

— Então, ambos com o mesmo roteiro, podíamos acamaradar, Doutor Topsius!

Ele espigado, magríssimo e pernudo, com uma rabona curta de lustrina, enchumaçada de manuscritos, cortejou gostosamente:

— Pois acamarademos, D. Raposo! Será uma deleitosa economia! Encovado na gola, de guedelha caída, o nariz agudo e pensativo, a calça esguia, o meu erudito amigo parecia-me uma cegonha, risível e cheia de letras, com óculos de ouro na ponta do bico. Mas já a minha animalidade reverenciava a sua intelectualidade; e fomos beber cerveja.

A sabedoria neste moço era dom hereditário. Seu avô materno, o naturalista Shlock, escreveu um famoso tratado em oito volumes sobre a Expressão fisionômica dos Lagartos, que assombrou a Alemanha. E seu tio, o decrépito Topsius, o memorável egiptólogo, aos setenta e sete anos, ditou da poltrona, onde o prendia a gota, esse livro genial e fácil a Síntese Monoteísta da Teogonia Egípcia, considerada nas relações do Deus Ftá e do Deus Imhotep com as Tríades dos Nomos.

O pai de Topsius, desgraçadamente, através desta alta ciência doméstica, permanecia figle numa charanga, em Munique; mas o meu camarada, reatando a tradição, logo aos vinte e dous anos tinha esclarecido, radiantemente, em dezenove artigos publicados no Boletim Hebdomadário de Escavações Históricas, a questão, vital para a civilização, de uma parede de tijolo erguida pelo Rei Pi-Sibkmé, da vigésima primeira dinastia, em torno do templo de Ramsés II, na lendária cidade de Tânis. Em toda a Alemanha científica, hoje, a opinião de Topsius, acerca desta parede, brilha com a irrefutabilidade do sol.

Só conservo de Topsius recordações suaves ou elevadas. Já sobre as águas bravias do Mar de Tiro; já nas ruas fuscas de Jerusalém; já dormindo lado a lado, sob a tenda, junto aos destroços de Jericó; já pelas estradas verdes de Galiléia, encontrei-o sempre instrutivo, serviçal, paciente e discreto. Raramente compreendia as suas sentenças, sonoras e bem cunhadas, tendo a preciosidade de medalhas de ouro; mas, como diante da porta impenetrável de um santuário, eu reverenciava, por saber que lá dentro, na sombra, refulgia a essência pura da Idéia. Por vezes, também o Doutor Topsius rosnava uma praga imunda; e então uma grata comunhão se estabelecia, entre ele e o meu singelo intelecto de bacharel em leis. Ficou-me a dever seis moedas; mas esta diminuta migalha de pecúnia, desaparece na copiosa onda de saber histórico, com que fecundou o meu espírito. Uma cousa apenas, além do seu pigarro de erudito, me desagradava nele, o hábito de se servir da minha escova de dentes.

Era também intoleravelmente vaidoso da sua pátria. Sem cessar, erguendo o bico, sublimava a Alemanha, mãe espiritual dos povos; depois ameaçava-me com a irresistibilidade das suas armas. A onisciência da Alemanha! A onipotência da Alemanha! Ela imperava, vasto acampamento entrincheirado de in-fólios, onde ronda e fala do alto a Metafísica armada! Eu, brioso, não gostava destas jactâncias. Assim, quando no Hotel das Pirâmides nos apresentaram um livro, para nele registrarmos nossos nomes e nossas terras, o meu douto amigo traçou o seu Topsius, ajuntando por baixo, altivamente, em letras tesas e disciplinadas como galuchos: — «DA IMPERIAL ALEMANHA». Arrebatei a pena; e recordando o barbudo João de Castro, Ormuz em chamas; Adamastor; a capela de São Roque, o Tejo e outras glórias, escrevi largamente, em curvas mais enfunadas que velas de galeões: «RAPOSO, PORTUGUÊS, DAQUÉM E DALÉM-MAR». E logo, do canto, um moço magro e murcho, murmurou, suspirando e a desfalecer:

— Em o cavalheiro necessitando alguma cousa, chame pelo Alpedrinha.

Um patrício! Ele contou-me a sua sombria história, desafivelando a minha maleta. Era de Trancoso e desgraçado. Tivera estudos; compusera um necrológio; sabia ainda mesmo de cor os versos mais doloridos do «nosso Soares de Passos». Mas apenas sua mamazinha morrera, tendo herdado terras, correra à fatal Lisboa, a gozar; conheceu logo na Travessa da Conceição uma espanhola deleitosíssima, do adocicado nome de Dulce; e largou com ela para Madri, num idílio. Aí o jogo empobreceu-o; a Dulce traiu-o; um chulo esfaqueou-o. Curado e macilento passou a Marselha; e durante anos arrastou-se, como um frangalho social, através de misérias inenarráveis. Foi sacristão em Roma. Foi barbeiro em Atenas. Na Moréia, habitando uma choça junto a um pântano, empregara-se na pavorosa pesca das sanguessugas; e de turbante, com odres negros ao ombro, apregoou água pelas vielas de Esmirna. O fecundo Egito atraíra-o sempre, irresistivelmente... E ali estava no Hotel das Pirâmides, moço de bagagens e triste.

— E se o cavalheiro trouxesse por aí algum jornal da nossa Lisboa, eu gostava de saber como vai a política.

Concedi-lhe generosamente todos os Jornais de Notícias que embrulhavam os meus botins.

O dono do hotel era um grego de Lacedemônia, de bigodes ferozes, e que hablaba un poquitito el castellano. Respeitosamente ele próprio, teso na sua sobrecasaca preta ornada de uma condecoração, nos conduziu à sala do almoço — la mas preciosa, sin duda, de todo el Oriente, caballeros!

Sobre a mesa murchava um ramo grosso de flores escarlates; no frasco do azeite flutuavam familiarmente cadáveres de moscas; as chinelas do criado topavam a cada instante um velho Jornal dos Debates, manchado de vinho, rojando ali desde a véspera, pisado por outras chinelas indolentes; e no teto, a fumaraça fétida dos candeeiros de latão juntara nuvens pretas as nuvens cor-de-rosa, onde esvoaçavam anjos e andorinhas. Por baixo da varanda uma rabeca e, uma harpa tocavam a Mandolinata. E em quanto Topsius se alagava de cerveja, eu sentia, estranhamente, crescer o meu amor por esta terra de preguiça e de luz.