Depois do café, o meu sapientíssimo amigo, com o lápis dos apontamentos na algibeira da rabona, abalou a rebuscar antigualhas e pedras do tempo dos Ptolomeus. Eu, acendendo um charuto, reclamei Alpedrinha; e confiei-lhe que desejava, sem tardança, ir rezar e ir amar. Rezar era por intenção da tia Patrocínio, que me recomendara uma jaculatória a São José, apenas pisasse esse solo do Egito, tomado, desde a fuga da Santa Família em cima do seu burrinho, chão devoto como o de uma Sé. Amar era por necessidade do meu coração, ansioso e ardido. Alpedrinha, em silêncio, ergueu as persianas, e mostrou-me uma clara praça, ornamentada ao centro por um herói de bronze, cavalgando um corcel de bronze; uma aragem quente levantava poeiradas lentas por sobre dous tanques secos; e em redor perfilavam-se no azul altos prédios, hasteando cada um a bandeira da sua pátria, como cidadelas rivais sobre um solo vencido. Depois o triste Alpedrinha indicou-me, a uma esquina, onde uma velha vendia canas-de-açúcar. Na tranqüila Rua das Duas-Irmãs. Aí (murmurou ele) eu veria, pendurada sobre a porta de uma lojinha discreta, uma pesada mão de pau, tosca e roxa, e por cima, em tabuleta negra, estes dizeres convidativos a ouro: «MISS MARY, LUVAS E FLORES DE CERA». Era esse o refúgio que ele aconselhava ao meu coração. Ao fundo da rua, junto de uma fonte chorando entre árvores, havia uma capela nova, onde a minha alma acharia consolação e frescura.
— E diga o cavalheiro a Miss Mary que vai de mandado do Hotel das Pirâmides.
Pus uma rosa ao peito, e saí, ovante. Logo da entrada das Duas-Irmãs avistei a ermidinha virginal, dormindo castamente sob os plátanos, ao rumor meigo da água. Mas o amantíssimo patriarca São José estava certamente, a essa hora, ocupado em receber jaculatórias mais instantes, e evoladas de lábios mais nobres; não quis importunar o bondosíssimo santo; e parei diante da mão de pau, pintada de roxo, que parecia estar ali esperando, alongada e aberta, para empolgar o meu coração.
Entrei, comovido. Por trás do balcão envernizado, junto a um vaso de rosas e magnólias, ela estava lendo o seu Times, com um gato branco no colo. O que me prendeu logo foram os seus olhos azuis-claros, de um azul que só há nas porcelanas, simples, celestes, como eu nunca vira na morena Lisboa. Mas encanto maior ainda tinham os seus cabelos, crespos, frisadinhos como uma carapinha de ouro, tão doces e finos que apetecia ficar eternamente e devotamente, a mexer-lhe com os dedos trêmulos; e era irresistível o profano nimbo luminoso, que eles punham em torno da sua face gordinha, de uma brancura de leite onde se desfez carmesim, toda tenra e suculenta. Sorrindo, e baixando com sentimento as pestanas escuras, perguntou-me se eu queria pelica ou Suécia.
Eu murmurei, roçando-me sofregamente pelo balcão:
— Trago-lhe recadinhos do Alpedrinha.
Ela escolheu entre o ramo um tímido botão de rosa, e deu-mo na ponta dos dedos. Eu trinquei-o, com furor. E a voracidade desta carícia pareceu agradar-lhe, porque um sangue mais quente veio afoguear-lhe a face, e chamou-me baixo, «mauzinho!» Esqueci São José e a sua jaculatória, e as nossas mãos, um momento unidas para ela me calçar a luva clara, não se desenlaçaram mais, nessas semanas que passei, na cidade dos Lágidas, em festivas delícias muçulmanas!
Ela era de Iorque, esse heróico condado da velha Inglaterra, onde as mulheres crescem fortes e bem desabrochadas, como as rosas dos seus jardins reais. Por causa da sua meiguice e do seu riso de ouro quando lhe fazia cócegas, eu pusera-lhe o nome galante e cacarejante de Maricoquinhas. Topsius, que a apreciava, chamava-lhe «a nossa simbólica Cleópatra». Ela amava a minha barba negra e potente; e, só para não me afastar do calor das suas saias, eu renunciei a ver o Cairo, o Nilo, e a eterna Esfinge, deitada à porta do deserto, sorrindo da humanidade vã...
Vestido de branco como um lírio, eu gozava manhãs inefáveis, encostado ao balcão da Mary; amaciando respeitosamente a espinha do gato. Ela era silenciosa; mas o seu simples sorrir com os braços cruzados, ou o seu modo gentil de dobrar o Times, saturava o meu coração de luminosa alegria. Nem precisava chamar-me «seu portuguesinho valente, seu bibichinho». Bastava que o seu peito arfasse; só para ver aquela doce onda lânguida, e saber que a levantava assim a saudade dos meus beijos, eu teria vindo de tão longe a Alexandria; iria mais longe, a pé, sem repouso, até onde as águas do Nilo são brancas!
De tarde, na caleche de chita com o nosso doutíssimo Topsius, dávamos lentos, amorosos passeios à beira do Canal Mamudiê. Sob as frondosas árvores, rente aos muros de jardins de serralho, eu sentia o aroma perturbador de magnólias, e outros cálidos perfumes que não conhecia. Por vezes uma leve flor roxa ou branca caía-me sobre o regaço; com um suspiro eu roçava a barba pelo rosto macio da minha Maricoquinhas; ela, sensível, estremecia. Na água jaziam as barcas pesadas que sobem o Nilo, sagrado e benfazejo, ancorando junto às ruínas dos templos, costeando as ilhas verdes onde dormem os crocodilos. Pouco a pouco a tarde caia. Vagarosamente, rolávamos na sombra olorosa. Topsius murmurava versos de Goethe. E as palmeiras da margem fronteira recortavam-se no poente amarelo, como feitas em relevo de bronze sobre uma lâmina de ouro.
Maricocas jantava sempre conosco no Hotel das Pirâmides; e, diante dela, Topsius desabrochava todo em flores de erudição amável. Contava-nos as tardes de festa da velha Alexandria dos Ptolomeus, no canal que levava a Canópia; ambas as margens resplandeciam de palácios e de jardins; as barcas, com toldos de seda, vogavam ao som dos alaúdes; os sacerdotes de Osíris, cobertos de peles de leopardo, dançavam sob os laranjais; e nos terraços, abrindo os véus, as damas de Alexandria bebiam à Vênus Assíria, pelo cálice da flor do lótus. Uma voluptuosidade esparsa amolecia as almas. Os filósofos mesmo eram frascários.
— E — dizia Topsius requebrando o olho — em toda a Alexandria só havia uma dama honesta, que comentava Homero e era tia de Sêneca. Só uma!
Maricoquinhas suspirava. Que encanto, viver nessa Alexandria, e navegar para Canópia, numa barca toldada de seda!
— Sem mim? — gritava eu, ciumento.
Ela jurava que, sem o seu portuguesinho valente, não queria habitar nem o céu!
Eu, regalado, pagava o champagne.
E os dias assim foram passando, leves, flácidos, gostosos, repicados de beijos — até que chegou a véspera sombria de partirmos para Jerusalém.
— O cavalheiro — dizia-me nessa manhã Alpedrinha engraxando os meus botins — o que devia era ficar aqui na Alexandriazinha, a refocilar...
Ah! se pudesse! Mas irrecusáveis eram os mandados da Titi! E, por amor do seu ouro, lá tinha de ir à negra Jerusalém, ajoelhar diante de oliveiras secas, desfiar rosários piedosos ao pé de frios sepulcros...
— Tu já estiveste em Jerusalém, Alpedrinha? — perguntei, enfiando desconsoladamente as ceroulas.
— Não senhor, mas sei... Pior que Braga!
— Irra!
A nossa ceia com Maricocas, à noite, no meu quarto, foi cortada de silêncios, de suspiros; as velas tinham a melancolia de tochas; o vinho anuviava-nos como aquele que se bebe nos funerais. Topsius ofertava consolações generosas.
— Bela dama, bela dama, o nosso Raposo há de voltar... Estou mesmo certo que trará da ardente terra da Síria, da terra da Vênus e da esposa dos Cantares, uma chama no seu coração mais fogosa e mais moça...
Eu mordia o beiço, sufocado:
— Pois está visto! — Ainda havemos de andar de caleche pelo Mamudiê... Isto é só ir rezar uns padre-nossos ao Calvário... Até me faz bem... Volto como um touro.
Depois do café fomos encostar-nos à varanda a olhar, calados, aquela suntuosa noite do Egito. As estrelas eram como uma grossa poeirada de luz que o bom Deus levantava lá em cima, passeando sozinho pelas estradas do céu. O silêncio tinha uma solenidade de sacrário. Nos escuros terraços, embaixo, uma forma branca movendo-se por vezes, de leve, mostrava que outras criaturas estavam ali, como nós, deixando a alma embeber-se mudamente no esplendor sideral; e nesta difusa religiosidade, igual à de uma multidão pasmando para os lumes de um altar-mor, eu sentia subir aos lábios, irresistivelmente, a doçura de uma ave-maria...