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Ao longe o mar dormia. E, à quente irradiação dos astros, eu podia distinguir, num pontal de areia, mergulhando quase na água, uma casa deserta, pequenina, toda branca e poética entre duas palmeiras... Então comecei a pensar que, mal a Titi morresse e fosse meu o seu ouro, eu poderia comprar esse doce retiro, forrá-lo de lindas sedas, e viver ao lado da minha luveira, vestido de turco, fresco, sereno, livre de todas as inquietações da civilização. Desagravos ao Sagrado Coração de Jesus ser-me-iam tão indiferentes, como as guerras que entre si travassem os reis. Do céu só me importaria a luz anilada, que banhasse a minha vidraça; da terra só me importariam as flores abertas no meu jardim, para aromatizar a minha alegria. E passaria os dias numa fofa preguiça oriental, fumando o puro latakié, tocando viola francesa, e recebendo perpetuamente essa impressão de felicidade perfeita, que a Mary me dava só com deixar arfar o seio e chamar-me «seu portuguesinho valente».

Apertei-a contra mim num desejo de a sorver. Junto à sua orelha, de uma brancura de concha branca balbuciei nomes inefáveis; disse-lhe rechonchudinha; disse-lhe riquinha. Ela estremeceu, ergueu os olhos magoados para a poeirada de ouro.

— Que de estrelas! Deus queira que amanhã o mar esteja manso!

Então, à idéia dessas longas ondas que me iam levar a ríspida terra do Evangelho, tão longe da minha Mary, um pesar infinito afogou-me o peito, e irreprensivelmente se me escapou dos lábios, em gemidos entoados, queixosos e requebrados... Cantei. Por sobre os terraços adormecidos da muçulmana Alexandria soltei a voz dolorida, voltado para as estrelas; e roçando os dedos pelo peito do jaquetão onde deviam estar os bordões da viola, fazendo os meus ais bem chorosos — suspirei o fado mais sentido da saudade portuguesa:

Coa minh’alma aqui te ficas, Eu parto só com os meus ais, E tudo me diz, Maricas, Que não te verei nunca mais.

Parei, abafado de paixão. O erudito Topsius quis saber se estes doces versos eram de Luís de Camões. Eu, choramingando, disse-lhe que estes, ouvira-os no Dafundo ao Calcinhas.

Topsius recolheu a tomar uma nota do grande poeta Calcinhas. Eu fechei a vidraça; e depois de ir ao corredor fazer às escondidas um rápido sinal da cruz, vim desapertar sofregamente, e pela vez derradeira, os atacadores do colete da minha saborosa bem-amada.

Breve, avaramente breve, foi essa noite estrelada do Egito!

Cedo, amargamente cedo, veio o grego de Lacedemônia avisar-me que já fumegava na baía, áspera e cheia de vento, el paquete, ferozmente chamado o Caimão, que me devia levar para as tristezas de Israel.

El señor D. Topsius, madrugador, já estava embaixo a almoçar pachorrentamente os seus ovos com presunto, a sua vasta caneca de cerveja. Eu tomei apenas um gole de café, no quarto, a um canto da cômoda, em mangas de camisa, com os olhos vermelhos sob a névoa das lágrimas. A minha sólida mala de couro atravancava o corredor, fechada e afivelada; mas Alpedrinha estava ainda acomodando, à pressa, a roupa suja dentro do saco de lona. E Maricoquinhas, sentada desoladamente à borda do leito, com o seu gentil chapéu enfeitado de papoulas e as olheirinhas pisadas, contemplava aquele enfardelar de flanelas, como se fossem bocados do seu coração atirados para o fundo do saco, para partirem e não voltarem mais!

Levas tanta roupa suja, Teodorico!

Balbuciei, dilacerado:

— Manda-se lavar em Jerusalém, com a ajuda de Nosso Senhor!

Deitei os meus bentinhos ao pescoço. Nesse instante Topsius assomava à porta, cachimbando, com a barraca do seu guarda-sol fechada sobre o braço, de galochas anchas para a umidade do tombadilho, e um volume da Bíblia enchumaçando-lhe a rabona de alpaca. Ao ver-me sem colete, repreendeu a minha amorosa preguiça.

— Mas compreendo, bela dama, compreendo! — acudiu ele, às cortesias a Mary, esgrouviado e onduloso, de óculos na ponta do bico. E doloroso deixar os braços de Cleópatra... Já Antônio por eles perdeu Roma e o mundo... Eu mesmo, todo absorvido na minha missão, com recantos crepusculares da história a alumiar, levo gratas memórias destes dias de Alexandria... Deliciosíssimos os nossos passeios pelo Mamudiê!... Permita-me que apanhe a sua luva, bela dama!... E se voltar jamais a esta terra dos Ptolomeus, não me esquecerá a Rua das Duas-Irmãs... «Miss Mary, luvas e flores de cera». Perfeitamente. Consentirá que lhe mande, quando completa, a minha História dos Lágidas... Há detalhes muito picantes... Quando Cleópatra se apaixonou por Herodes, o rei da Judéia...

Mas Alpedrinha, da beira do leito, gritava., alvoroçado:

— Cavalheiro! Ainda há aqui roupa suja!

Rebuscando, entre os cobertores revoltos, descobrira uma longa camisa de rendas, com laços de seda clara. Sacudia-a; e espalhava-se um aroma saudoso de violeta e de amor... Ai! Era a camisa de dormir da Mary; quente ainda dos meus abraços!

— Pertence à senhora D. Mary! E a tua camisinha, amor! gemi eu, cruzando os suspensórios.

A minha luveirinha ergueu-se, trêmula, descorada — e teve um poético rasgo de paixão. Enrolou a sua camisinha, atirou-me para os braços, tão ardentemente, como se entre as dobras viesse também o seu coração.

— Dou-ta, Teodorico! Leva-a, Teodorico! Ainda está amarrotada da nossa ternura!... Leva-a para dormires com ela a teu lado, como se fosse comigo... Espera, espera ainda, amor! Quero pôr-lhe uma palavra, uma dedicatória!

Correu à mesa, onde jaziam restos do papel sisudo em que eu escrevia à Titi a história edificativa dos meus jejuns em Alexandria, das noites consumidas a embeber-me do Evangelho... E eu, com a camisinha perfumada nos braços, sentindo duas bagas de pranto rolarem-me pelas barbas, procurava angustiosamente em redor onde guardar aquela preciosa relíquia de amor. As malas estavam fechadas. O saco de lona estalava, repleto.

Topsius, impaciente, tirara das profundezas do seio o seu relógio de prata. O nosso lacedemônio, à porta, rosnava:

— D. Teodorico, es tarde, es mui tarde...

Mas a minha bem-amada já sacudia o papel, coberto das letras que ela traçara, largas, impetuosas e francas como o seu amor: «Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!»

— Oh, riquinha! E onde hei de eu meter isto? Eu não hei de levar a camisa nos braços, assim nua e ao léu!

Já Alpedrinha, de joelhos, desafivelava desesperadamente o saco. Então Maricoquinhas, com uma inspiração delicada, agarrou uma folha de papel pardo; apanhou do chão um nastro vermelho; e as suas habilidosas mãos de luveira fizeram da camisinha um embrulho redondo, cômodo e gracioso — que eu meti debaixo do braço, apertando-o com avara, inflamada paixão.

Depois, foi um murmúrio arrebatado de soluços, de beijos, de doçuras...

— Mary; anjo querido!

— Teodorico, amor! ...

— Escreve-me para Jerusalém...

— Lembra-te da tua bichaninha bonita...

Rolei pela escada, tonto. E a caleche que tantas vezes me passeara, enlaçado com Mary; por sob os arvoredos aromáticos do Mamudiê, lá partiu, ao trote da parelha branca, arrancando-me a uma felicidade onde o meu coração deitara raízes, agora despedaçadas e gotejando sangue no silêncio do meu peito. O douto Topsius, abarracado sob o seu guarda-sol verde, recomeçara, impassível, a murmurar cousas de velha erudição. Sabia eu por onde íamos rodando? Por sobre a nobre calçada dos Sete-Estados, que o primeiro dos Lágidas construíra para comunicar com a Ilha de Faros, louvada nos versos de Homero! Nem o escutava, debruçado para trás, na caleche, agitando o lenço molhado da minha saudade. A doce Maricoquinhas, à porta do hotel, ao lado de Alpedrinha, linda sob o chapéu florido de papoulas, fazia esvoaçar também o seu lenço amoroso e acariciador; e um momento estas duas cambraias brancas sacudiram uma para a outra, no ar quente, o ardor dos nossos corações. Depois eu caí sobre a almofada de chita, como cai um corpo morto...