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Apenas embarcado no Caimão, corri a esconder no beliche a minha dor. Topsius ainda me agarrou pela manga para me mostrar sítios das grandezas dos Ptolomeus, o porto do Eunotos, a enseada de mármore onde ancoravam as galeras de Cleópatra. Fugi; na escada esbarrei, quase rolei sobre uma irmã da caridade, que subia timidamente, com as suas contas na mão. Rosnei um «desculpe, minha santinha». E tombando enfim no catre, deixei escapar o pranto à larga, por cima do embrulho de papel pardo; ele era tudo que me restava dessa paixão de incomparável esplendor, passada na terra do Egito.

Dous dias e duas noites o Caimão arquejou e rolou nos vagalhões do Mar de Tiro. Enrodilhado num cobertor, sem largar do peito o embrulhinho de Mary eu recusava com ódio as bolachas que de vez em quando me trazia o humaníssimo Topsius; e desatento às cousas eruditas que ele imperturbavelmente me contava destas águas chamadas pelos egípcios o Grande Verde, rebuscava, debalde, na memória, bocados soltos de uma oração que ouvira à Titi, para amansar as vagas iradas.

Mas uma tarde, ao escurecer, tendo cerrado os olhos, pareceu-me sentir sob as chinelas um chão firme, chão de rocha, onde cheirava a rosmaninho; e achei-me incompreensivelmente a subir uma colina agreste de companhia com a Adélia, e com a minha loura Mary; que saíra de dentro do embrulho, fresca, nítida, sem ter sequer amarrotado as papoulas do seu chapéu! Depois, por trás de um penedo, surgiu-nos um homem nu, colossal, tisnado, de cornos; os seus olhos reluziam, vermelhos como vidros redondos de lanternas; e, com o rabo infindável, ia fazendo no chão o rumor de uma cobra irritada que roja por folhas secas. Sem nos cortejar, impudentemente, pôs-se a marchar ao nosso lado. Eu percebi bem que era o diabo; mas não senti escrúpulos, nem terror. A insaciável Adélia atirava olhadelas oblíquas à potência dos seus músculos. Eu dizia-lhe, indignado: «Porca, até te serve o diabo?»

Assim marchando, chegamos ao alto do monte, onde uma palmeira se desgrenhava sobre um abismo cheio de mudez e de treva. Defronte de nós, muito longe, o céu desdobrava-se como um vasto estofo amarelo; e sobre esse fundo vivo, cor de gema de ovo, destacava um negríssimo outeiro, tendo cravadas no alto três cruzinhas em linha, finas e de um só traço. O diabo, depois de escarrar, murmurou, travando-me da manga: «A do meio é a de Jesus, filho de José, a quem também chamam o Cristo; e chegamos a tempo para saborear a Ascensão». Com efeito! A cruz do meio, a do Cristo, desarraigada do outeiro, como um arbusto que o vento arranca, começou a elevar-se, lentamente, engrossando, atravancando o céu. E logo de todo o espaço voaram bandos de anjos, a sustê-la, apressados como as pombas quando acodem ao grão; uns puxavam-na de cima, tendo-lhe amarrado ao meio longas cordas de seda; outros, debaixo, empurravam-na e nós víamos o esforço entumecido dos seus braços azulados. Por vezes do madeiro desprendia-se, como uma cereja muito madura, uma grossa gota de sangue; um serafim recolhia-a nas mãos e ia colocá-la sobre a parte mais alta do céu onde ela ficava suspensa e brilhando com o resplendor de uma estrela. Um ancião enorme de túnica branca, a que mal distinguíamos as feições, entre a abundância da coma revolta e os flocos de barbas nevadas, comandava, estirado entre nuvens, estas manobras da Ascensão, numa língua semelhante ao latim e forte como o rolar de cem carros de guerra. Subitamente tudo desapareceu. E o diabo, olhando para mim, pensativo:

«Gonsummatum est, amigo! Mais outro deus! Mais outra religião! E esta vai espalhar em terra e céu um inenarrável tédio.»

E logo, levando-me pela colina abaixo, o diabo rompeu a contar-me animadamente os cultos, as festas, as religiões que floresciam na sua mocidade. Toda esta costa do grande verde, então, desde Biblos até Cartago, desde Elêusis até Mênfis, estava atulhada de deuses. Uns deslumbravam pela perfeição da sua beleza, outros pela complicação da sua ferocidade. Mas todos se misturavam à vida humana, divinizando-a; viajavam em carros triunfais, respiravam as flores, bebiam os vinhos, defloravam as virgens adormecidas. Por isso eram amados com um amor que não mais voltará; e os povos, emigrando, podiam abandonar os seus gados ou esquecer os rios onde tinham bebido, mas levavam carinhosamente os seus deuses ao colo. «O amigo, perguntou ele, nunca esteve em Babilônia?» Aí todas as mulheres, matronas ou donzelas, se vinham um dia prostituir nos bosques sagrados, em honra da deusa Melita. As mais ricas chegavam em carros marchetados de prata, puxados a búfalos, e escoltadas de escravas; as mais pobres traziam uma corda ao pescoço. Umas, estendendo um tapete na erva, agachavam-se como reses pacientes; outras, erguidas, nuas, brancas, com a cabeça escondida num véu preto, eram como esplêndidos mármores entre os troncos dos álamos. E todas assim esperavam que qualquer, atirando-lhe uma moeda de prata, lhes dissesse: «Em nome de Vênus!» Seguiam-no então, fosse um príncipe vindo de Susa com tiara de pérolas, ou o mercador que desce o Eufrates no seu barco de couro; e toda a noite rugia, na escuridão das ramagens, o delírio da luxúria ritual. Depois o diabo disse-me as fogueiras humanas de Moloque, os mistérios da boa-deusa em que os lírios se regavam com sangue, e os ardentes funerais de Adônis...

E parando, risonhamente: «o amigo nunca esteve no Egito?» Eu disse-lhe que estivera e conhecera lá Maricocas. E o diabo, cortês:

«Não era Maricocas, era Ísis!» Quando a inundação chegava até Mênfis, as águas cobriam-se de barcas sagradas. Uma alegria heróica, subindo para o sol, fazia os homens iguais aos deuses. Osíris, com os seus cornos de boi, montava Ísis; e, entre o estridor das harpas de bronze, ouvia-se por todo o Nilo o rugir amoroso da vaca divina.

Depois, o diabo contava-me como brilhavam, doces e belas, na Grécia, as religiões da natureza. Aí tudo era branco, polido, puro, luminoso e sereno; uma harmonia saía das formas dos mármores, da constituição das cidades, da eloquência das academias e das destrezas dos atletas; por entre as ilhas da Jônia, flutuando na moleza do mar mudo como cestas de flores, as nereidas dependuravam-se da borda dos navios para ouvir as histórias dos viajantes; as musas, de pé, cantavam pelos vales; e a beleza de Vênus era como uma condensação da beleza da Helênia.

Mas aparecera este carpinteiro de Galiléia, e logo tudo acabara! A face humana tornava-se para sempre pálida, cheia de mortificação; uma cruz escura, esmagando a terra, secava o esplendor das rosas, tirava o sabor aos beijos; e era grata ao deus novo a fealdade das formas.

Julgando Lúcifer entristecido, eu procurava consolá-lo: «Deixe estar, ainda há de haver no mundo muito orgulho, muita prostituição, muito sangue, muito furor! Não lamente as fogueiras de Moloque. Há de ter fogueiras de judeus.» E ele, espantado: «Eu? Uns ou outros, que me importa, Raposo? Eles passam, eu fico!»

Assim, despercebido, a conversar com Satanás, achei-me no Campo de Santana. E tendo parado, enquanto ele desenvencilhava os cornos dos ramos de uma das árvores, ouvi de repente ao meu lado um berro: «Olha o Teodorico com o Porco-Sujo!» Voltei-me. Era a Titi! A Titi, lívida, terrível, erguendo, para me espancar, o seu livro de missa! Coberto de suor, acordei.

Topsius gritava, à porta do beliche, alegremente:

— Levante-se, Raposo! Estamos à vista da Palestina!

O Caimão parara; e no silêncio eu sentia a água roçando-lhe o costado, de leve, num murmúrio de mansa carícia. Por que sonhara eu assim, ao avizinhar-me de Jerusalém, com os deuses falsos, Jesus seu vencedor, e o demônio a todos rebelde? Que suprema revelação me preparava o Senhor?...