Desenrodilhei-me da manta; atordoado, sujo, sem largar o precioso embrulho da Mary; subi ao tombadilho, encolhido no meu jaquetão. Um ar fino e forte banhou-me deliciosamente, trazendo um aroma de serra e de flor de laranjeira. O mar emudecera, todo azul, na frescura da manhã. E ante meus olhos pecadores estendia-se a terra da Palestina, arenosa e baixa, com uma cidade escura, rodeada de pomares, toucada no alto de flechas de sol irradiando como os raios de um resplendor de santo.
— Jafa! — gritou-me Topsius, sacudindo o seu cachimbo de louça. — Aí tem o D. Raposo a mais antiga cidade da Ásia, a velhíssima Jepo, anterior ao dilúvio! Tire o barrete, saúde essa anciã dos tempos, cheia de lenda e de história... Foi aqui que o borrachíssimo Noé construiu a sua arca!
Cortejei, assombrado.
— Caramba! Ainda agora a gente chega, já lhe começam a aparecer cousas de religião!
E conservei-me descoberto, porque o Caimão, ao ancorar diante da Terra Santa, tomara o recolhimento de uma capela, cheia de piedosas ocupações e de unção. Um lazarista, de longa sotaina, passeava, com os ossos baixos, meditando o seu breviário. Sumidas dentro dos capuzes negros de lustrina, duas religiosas corriam os dedos pálidos pelas contas dos seus rosários. Ao longo da amurada úmida, peregrinos da Abissínia, hirsutos padres gregos de Alexandria, pasmavam para o casario de Jafa, aureolado de sol, como para a iluminação de um sacrário. E a sineta à popa tilintava, na brisa salgada, com uma doçura devota de toque de missa...
Mas, vendo uma barcaça escura remar para o Caimão, baixei depressa ao beliche a pôr o meu capacete de cortiça, calçar luvas pretas, para pisar decorosamente a terra do meu Salvador. Ao voltar, bem escovado, bem perfumado, achei a lancha atulhada. E descia, com alvoroço, atrás de um franciscano barbudo, quando o amado embrulhinho da Mary escapou dos meus braços carinhosos, rolou em saltos pela escada como uma péla, raspou a borda do bote... Ia sumir-se nas águas amargas! Dei um berro! Uma das religiosas apanhou-o, ligeira e cheia de misericórdia.
Agradecido, minha senhora! — gritei, enfiado. — E um pacotezinho de roupa! Seja pelo sagrado amor de Maria!
Ela refugiou-se modestamente na sombra do seu capuz; e como eu me acomodara, mais longe, entre Topsius e o franciscano barbudo que cheirava a alho — a santa criatura guardou o embrulho sobre o seu puro regaço, deitou-lhe mesmo por cima as contas do seu rosário.
O arrais, empunhando o leme, bradou: «Alá é grande, larga!» Os árabes remaram cantando. O sol surgiu por trás de Jafa. E eu, encostado ao meu guarda-chuva, contemplava a pudica religiosa que assim levava, ao colo, para a terra de castidade, a camisinha da Mary.
Era nova; e entre o bioco triste de lustrina preta parecia de marfim o seu rosto oval, onde as pestanas longas punham a sombra de uma dolente melancolia. Os beiços tinham perdido toda a cor e todo o calor, para sempre inúteis, destinados somente a beijar os pés arroxeados do cadáver de um deus. Comparada com Mary; rosa de Iorque aberta e sensual, perfumando Alexandria, esta pendia como um lírio ainda fechado e já murcho na umidade de uma capela. Ia certamente para algum hospício da Terra Santa. A vida para ela devia ser uma sucessão de chagas a cobrir de fios e de lençóis, a estender por cima de faces mortas. E era decerto o medo do Senhor que a tornava assim tão pálida.
— Bem tola! — murmurei eu.
Pobre e estéril criatura! Percebeu ela por acaso o que continha aquele embrulho pardo? Sentiu ela subir de lá, e espalhar-se no escuro do seu capuz, um perfume estranho e enlanguescedor de baunilha e de pele amorosa? A quentura do leito revolto, que ficara nas rendas da camisa, atravessou por acaso o papel e veio aquecer-lhe brandamente os joelhos? Quem sabe! Durante um momento pareceu-me que uma gota de sangue novo lhe roseou a face desmaiada, e que debaixo do hábito, onde brilhava uma cruz, o seu seio arfou, perturbado; mesmo julguei ver lampejar, por entre as suas pestanas, um raio fugitivo e assustado, procurando as minhas barbas cerradas e pretas... Mas foi só um relance. Outra vez, sob o capuz, o rosto recaiu na sua frialdade de mármore santo; e sobre o seio submetido, a cruz pesou, ciumenta e de ferro. Ao seu lado, a outra religiosa, rechonchuda e de lunetas, sorria para o verde-mar, sorria para o sábio Topsius — com um sorriso claro que saía da paz do seu coração e lhe punha uma covinha no queixo.
Apenas saltamos na areia da Palestina, corri a agradecer, de capacete na mão, garboso e palaciano.
— Minha irmã, estou muito penhorado.. Grande desgosto se se perdesse o pacotezinbo!... E de minha tia, uma encomenda para Jerusalém... Lá lhe contarei... A Titi é muito respeitadora de cousas santas; pela-se pela caridade...
Muda, no refolho do seu capuz, ela estendeu-me o embrulhinho com a ponta dos dedos, débeis e mais transparentes que os de uma Senhora da Agonia. E os dous hábitos negros sumiram-se, entre muros faiscantes de cal nova, numa viela em escadas onde apodrecia o cadáver de um cão sob o vôo dos moscardos. Eu murmurei ainda: «Bem tola!»
Quando me voltei, Topsius, à sombra do seu guarda-sol, conversava com o homem prestante, que foi nosso guia através das terras da Escritura. Era moço, moreno, espigado, com longos bigodes esvoaçando ao vento; usava jaqueta de veludilho e botas brancas de montar; as coronhas prateadas de duas pistolas, emergindo de uma faixa de lã negra, armavam-lhe heroicamente o peito forte; e trazia amarrado na cabeça, com as pontas e as franjas atiradas para trás, um lenço rutilante de seda amarela. O seu nome era Paulo Pote; a sua pátria o Montenegro; e toda a costa da Síria o conhecia pelo alegre Pote. Jesus, que alegre matalote! A alegria faiscava-lhe na pupila azul-clara; a alegria cantava-lhe nos dentes incomparáveis; a alegria estremecia-lhe nas mãos buliçosas; a alegria ressoava-lhe no bater dos tacões. Desde Áscalon até aos bazares de Damasco, desde o Carmelo até aos pomares de Engada — ele era o alegre Pote. Estendeu-me rasgadamente a bolsa de tabaco perfumado. Topsius maravilhou-se do seu saber bíblico. Eu, com palmadas pelo ventre, gritei-lhe logo — meu gajo! E, depois de valentes apertos de mão, fomos para o Hotel de Josafate firmar o nosso contrato, bebendo vasta cerveja.
O alegríssimo Pote depressa organizou a nossa caravana para a cidade do Senhor. Um macho levava as bagagens; o arrieiro árabe, embrulhado num farrapo azul, era tão airoso e lindo que eu, irresistivelmente e sem cessar, procurava o negro afago do seu olhar de veludo; e, por luxo oriental, como escolta, seguia-nos um beduíno, velho, catarroso, com o albornoz de lã de camelo listrado de cinzento, e uma forte lança ferrugenta toda enfeitada de borlas.
Guardei num alforje, desveladamente, o embrulhinho mimoso da camisinha de Mary; depois, já na sela, alongados os loros do pernudo Topsius, o festivo Pote, floreando o chicote, lançou o antigo grito das Cruzadas e de Ricardo-Coração-de-Leão — Avante, a Jerusalém; Deus o quer! E a trote, com os charutos em brasa, saímos de Jafa pela porta do Mercado — à hora em que suavemente tocava a vésperas no Hospício dos Padres Latinos.
Na luminosa meiguice da tarde, a estrada alongava-se através de jardins, hortas, pomares, laranjais, palmeirais, terra de promissão, resplandecente e amável. Por entre as sebes de mirtos perdia-se o fugidio cantar das águas. O ar todo, de uma doçura inefável, como para nele respirar melhor o povo eleito de Deus, era um derramado perfume de jasmins e limoeiros. O grave e pacífico chiar das noras ia adormecendo, ao fim do dia de rega, entre as romãzeiras em flor. Alta e serena no azul, voava uma grande águia.
Consolados, paramos numa fonte de mármore vermelho e negro, abrigada à sombra de sicômoros onde arrulhavam rolas; ao lado erguia-se uma tenda, com um tapete na relva coberto de uvas e de malgas de leite; e o velho de barbas brancas que a ocupava saudou-nos em nome de Alá, com a nobreza de um patriarca. A cerveja tinha-me feito sede; foi uma rapariga bela como a antiga Raquel, que me deu a beber do seu cântaro de forma bíblica, sorrindo, com o seio descoberto, duas longas argolas de ouro batendo-lhe a face morena, e um cordeirinho branco e familiar preso da ponta da túnica.