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A tarde descia, muda e dourada, quando penetramos na planície de Sáron, que a Bíblia outrora encheu de rosas. No silêncio tilintavam os chocalhos de um rebanho de cabras negras, que um árabe ia pastoreando, nu como um São João. Lá ao fundo, os montes sinistros da Judéia, tocados pelo sol oblíquo que se afundava sobre o Mar de Tiro, pareciam ainda formosos, azuis e cheios de doçura de longe, como as ilusões do pecado. Depois tudo escureceu. Duas estrelas de um resplendor infinito apareceram; e começaram a caminhar adiante de nós para os lados de Jerusalém.

O nosso quarto, no Hotel do Mediterrâneo, em Jerusalém, com a sua abóbada caiada de branco, o chão de tijolo, semelhava uma rígida cela de rude mosteiro. Mas, fronteira à janela, um tabique delgado, revestido de papel de ramagens azuis, dividia-o do outro quarto, onde nós sentíamos uma voz fresca cantarolar a Balada do Rei de Tule; e aí, exalando conforto e civilização, brilhava um guarda-roupa de mogno, que eu abri, como se abre um relicário, para encerrar o meu embrulhinho bendito.

Os dous leitozinhos de ferro desapareciam sob as pregas virginais dos cortinados de cambraia branca; e ao meio havia uma mesa de pinho, onde Topsius estudava o mapa da Palestina, enquanto eu, de chinelos, passeava, limando as unhas. Era a devota sexta-feira em que a cristandade comemora, enternecida, os santos mártires de Évora. Nós tínhamos chegado nessa tarde, sob uma chuva triste e miúda, à cidade do Senhor; e de vez em quando Topsius, erguendo os óculos de cima das estradas de Galiléia, contemplava-me de braços cruzados e murmurava com amizade:

— Ora está o amigo Raposo em Jerusalém!

Eu, parando ao espelho, dava um olhar às barbas crescidas, à face crestada, e murmurava também, agradado:

— E verdade, cá está o belo Raposo em Jerusalém!

E voltava, insaciado, a admirar através dos vidros baços a divina Sião. Sob a chuva melancólica erguiam-se defronte as paredes brancas de um convento silencioso, com as persianas verdes corridas, e duas enormes goteiras de zinco a cada esquina, uma escoando-se ruidosamente sobre uma viela deserta, a outra caindo no chão mole de uma horta plantada de couves, onde omeava um jumento. Desse lado, era uma vastidão infindável de telhados em terraço, lúgubres e cor de lodo, com uma cupulazinha de tijolo em forma de forno, e longas varas para secar farrapos; e quase todos decrépitos, desmantelados, misérrimos, pareciam desfazer-se na água lenta que os alagava. Do outro, elevava-se uma encosta atulhada de casebres sórdidos, com verduras de quintal, esfumadas, arrepiadas na névoa úmida; por entre eles, torcia-se uma viela esgalgada, em escadinhas, onde constantemente se cruzavam frades de alpercatas sob os seus guarda-chuvas; sombrios judeus de melenas caídas, ou algum vagaroso beduíno arregaçando o seu albornoz... Por cima pesava o céu pardacento. E assim da minha janela me aparecia a velha Sião, a bem edificada, brilhante de claridade, alegria da terra, e formosa entre as cidades.

— Isto é um horror, Topsius! Bem dizia o Alpedrinha! Isto é pior que Braga, Topsius! E nem um passeio, nem um bilhar, nem um teatro! Nada! Olha que cidade para viver Nosso Senhor!

— Sim! No tempo dele era mais divertida — resmungou o meu sapiente amigo.

E logo me propôs que no domingo partíssemos para as margens do Jordão, onde o reclamavam os seus estudos sobre os Herodes. Aí eu poderia ter deleites campestres, banhando-me nas águas santas, atirando às perdizes, entre as palmeiras de Jericó. Acedi com gosto. E descemos a comer, chamados por uma sineta de convento, funerária e badalando na sombra do corredor.

O refeitório era também abobadado, com uma esteira de esparto sobre o chão de ladrilho; e estávamos sós, o erudito investigador dos Herodes e eu, na mesa tristonha, adornada com flores de papel em vasinhos rachados. Remexendo o macarrão de uma sopa dessaborida, murmurei, sucumbido: «Jesus, Topsius, que grande maçada!» Mas uma porta de vidraça ao fundo abriu-se de leve; e logo exclamei, arrebatado: «Caramba, Topsius, que grande mulher!»

Grande, em verdade! Sólida e saudável como eu; branca, da alvura do linho muito lavado, e picada de sardas; coroada por uma massa ardente de cabelo ondeado e castanho; presa num vestido de sarja azul que os seios rijos quase faziam estalar, ela entrou, derramando um fresco cheiro de sabão Windsor e de água-de-colônia, e logo alumiou todo o refeitório com o esplendor da sua carne e da sua mocidade... O fecundo Topsius comparou-a à fortíssima deusa Cibele.

Cibele sentou-se no topo da mesa, serena e soberba. Ao lado, fazendo ranger a cadeira com o peso dos seus amplos membros, acomodou-se um Hércules tranqüilo, calvo, de espessas barbas grisalhas — que, no mero gesto de desdobrar o guardanapo, revelou a onipotência do dinheiro e o envelhecido hábito de mandar. Por um yes que ela murmurou, compreendi que era da terra de Maricocas. E lembrava-me a inglesa do senhor barão.

Ela colocara junto ao prato um livro aberto que me pareceu ser de versos; o barbaças, mastigando com o vagar majestoso de um leão, folheava também em silêncio o seu Guia do Oriente. E eu esquecia o meu carneiro guisado, para contemplar devoradamente cada uma das suas perfeições. De vez em quando ela erguia a franja cerrada das suas pestanas; eu esperava com ânsia o dom desse claro e suave olhar; mas ela derramava-o pelos muros caiados, pelas flores de papel, e deixava-o recair, desinteressado e frio, sobre as páginas do seu poema.

Depois do café beijou a mão cabeluda do barbaças; e desapareceu pela porta envidraçada, levando consigo o aroma, a luz, e a alegria de Jerusalém. O Hércules acendeu morosamente o cachimbo; disse ao moço «que lhe mandasse o Ibraim, o guia»; levantou-se, pesado e membrudo. Junto à porta derrubou o guarda-chuva de Topsius, do venerabilíssimo Topsius, glória da Alemanha, membro do Instituto Imperial de Escavações Históricas; e passou, sem o erguer, nem sequer baixar o olho altivo.

— Irra, bruto! — rosnei, a borbulhar de furor.

O meu douto amigo, com a sua cobardia social de alemão disciplinado, apanhou o seu guarda-chuva e escovou-lhe o paninho, murmurando, já trêmulo, que talvez «o barbaças fosse um duque...»

— Qual duque! Para mim não há duques! Eu sou Raposo, dos Raposos do Alentejo... Rachava-o!

Mas a tarde descia — e devíamos fazer a nossa visita reverente ao sepulcro do nosso Deus. Corri ao quarto, a ornar-me com o meu chapéu alto, como prometera à Titi; e penetrava no corredor quando vi Cibele abrir a porta, junto da nossa porta, e sair envolta numa capa cinzenta, com uma gorra onde alvejavam duas penas de gaivota. O coração bateu-me no delírio de uma grande esperança. Assim, era ela que cantarolava a Balada do rei de Tule! Assim, os nossos leitos estavam apenas separados pelo fino, frágil tabique coberto de ramarias azuis! Nem procurei as luvas pretas; desci num alvoroço, certo de que a ia encontrar no sepulcro de Jesus; e planeava já verrumar no tabique um buraco, por onde o meu olho namorado pudesse ir saciar-se nas belezas do seu desalinho.

Ainda chovia, lugubremente. Apenas começamos a atolar-nos no enxurro da Via-Dolorosa, entalada entre muros cor de lodo — chamei Pote para debaixo do meu guarda-chuva, perguntei-lhe se vira no hotel a minha forte e sardenta Cibele. O jucundo Pote já a admirara. E pelo Ibraim, seu compadre dileto, sabia que o barbaças era um escocês, negociante de curtumes...

— Aí está, Topsius! — gritei eu. — Negociante de curtumes... Qual duque! E uma besta! Eu rachava-o! Em cousas de dignidade sou uma fera. Rachava-o!

A filha, a das bastas tranças, dizia Pote, tinha um nome radiante de pedra preciosa: chamava-se Ruby, rubim. Amava os cavalos, era arrojada; na alta Galiléia, de onde vinham, matara uma águia negra...

— Ora aqui têm os cavalheiros a casa de Pilatos...