Выбрать главу

— Venha a circassiana! — gritei, excitado. — Caramba, eu vim aos santos lugares para me refocilar,.. Venha a circassiana! Larga as piastras, Pote! Irra! Quero regalar a carne!

Fatmé saiu, recuando; o festivo Pote reclinou-se entre nós, abrindo a sua bolsa perfumada de tabaco de Alepo. Então, uma portinha branca, sumida no muro caiado, rangeu a um canto, de leve; e uma figura entrou, velada, vaga, vaporosa. Amplos calções turcos de seda carmesim tufavam com languidez, desde a sua cinta ondeante até aos tornozelos, onde franziam, fixos por uma liga de ouro; os seus pezinhos mal pousavam, alvos e alados, nos chinelos de marroquim amarelo; e através do véu de gaze que lhe enrodilhava a cabeça, o peito e os braços — brilhavam recamos de ouro, centelhas de jóias, e as duas estrelas negras dos seus olhos. Espreguicei-me, túmido de desejo.

Por trás dela Fatmé, com a ponta dos dedos, ergueu-lhe o véu devagar, devagar e dentre a nuvem de gaze surgiu um carão cor de gesso, escaveirado e narigudo, com um olho vesgo, e dentes podres que negrejavam no langor néscio do sorriso... Pote pulou do divã, injuriando Fatmé, ela gritava por Alá, batendo nos seios, que soavam molemente como odres mal cheios.

E desapareceram, assanhados, levados numa rajada de ira. A circassiana, requebrando-se, com o seu sorriso pútrido, veio estender-nos a mão suja, a pedir «presentinhos» num tom rouco de aguardente. Repeli-a com nojo. Ela coçou um braço, depois a ilharga; apanhou tranqüilamente o seu véu e saiu arrastando as chinelas.

— Oh, Topsius! — rosnei eu. — Isto parece-me uma grande infâmia!

O sábio fez considerações sobre a voluptuosidade. Ela é sempre enganadora. Debaixo do sorriso luminoso está o dente cariado. Dos beijos humanos só resta o amargor. Quando o corpo se extasia, a alma entristece...

— Qual alma! Não há alma! O que há é um eminentíssimo desaforo! Na Rua do Arco-do-Bandeira, esta Fatmé tinha já dous murros na bochecha... Irra!

Sentia-me feroz, com desejos de escavacar o bandolim... Mas Pote reapareceu, cofiando os bigodões dizendo que por mais nove piastras de ouro, Fatmé consentia em mostrar a sua secreta maravilha, uma virgem das margens do Nilo, da alta Núbia, bela como a noite mais bela do Oriente. E ele vira-a, afiançava-a, valia o tributo de uma fértil província.

Frágil e liberal, cedi. Uma a uma, as nove piastras de ouro tiniram na mão gordufa de Fatmé.

De novo a porta caiada rangeu, ficou cerrada — e, sobre o tom alvaiado, destacou, na sua nudez cor de bronze, uma esplêndida fêmea, feita como uma Vênus. Durante um momento parou, muda, assustada pela luz e pelos homens, roçando os joelhos lentamente. Uma tanga branca cobria-lhe os flancos possantes e ágeis; os cabelos hirsutos, lustrosos de óleo, com cequins de ouro entrelaçados, caíam-lhe sobre o dorso, como uma juba selvagem; um fio solto de contas de vidro azul enroscava-se-lhe em torno do pescoço e vinha escorregar por entre o rego dos seios rijos, perfeitos e de ébano. De repente saltou convulsamente, repicando a língua, uma ululação desolada: Lu! lu! lu! lu! lu! Atirou-se de bruços para o divã; e estirada, na atitude de uma esfinge, ficou dardejando sobre nós, séria e imóvel, os seus grandes olhos tenebrosos.

— Hem? — dizia Pote, acotovelando-me. — Veja-lhe o corpo... Olhe os braços! Olhe a espinha como arqueia! E uma pantera!

E Fatmé, de olhos em alvo, chilreava beijos na ponta dos dedos exprimindo os deleites transcendentes que devia dar o amor daquela núbia... Certo, pela persistência do seu olhar, que as minhas barbas fortes a tinham cativado, desenrosquei-me do divã, fui-me acercando, devagar, como para uma presa certa. Os seus olhos alargavam-se, inquietos e faiscantes. Gentilmente, chamando-lhe «minha lindinha», acariciei-lhe o ombro frio; e logo ao contato da minha pele branca a núbia recuou, arrepiada, com um grito abafado de gazela ferida. Não gostei. Mas quis ser amável. Disse-lhe paternalmente:

— Ah! se tu conhecesses a minha pátria!... E olha que sou capaz de te levar! Em Lisboa é que é! Vai-se ao Dafundo, ceia-se no Silva... Isto aqui é uma choldra! E as raparigas como tu são bem tratadas; dá-se-lhes consideração, os jornais falam delas, casam com proprietários...

Murmurava-lhe ainda outras cousas profundas e doces. Ela não compreendia o meu falar; e nos seus olhos esgazeados flutuava a longa saudade da sua aldeia da Núbia, dos rebanhos de búfalos que dormem à sombra das tamareiras, do grande rio que corre eterno e sereno entre as ruínas das religiões e os túmulos das dinastias...

Imaginando então despertar o seu coração com a chama do eu, puxei-a para mim, lascivamente. Ela fugiu; encolheu-se toda a um canto, a tremer; e deixando cair a cabeça entre as mãos, começou a chorar, longamente.

— Olha que maçada! — gritei, embaçado.

E agarrei o capacete, abalei, esgarçando, quase no meu furor o pano preto franjado de ouro. Paramos numa cela ladrilhada onde cheirava mal. E ai bruscamente foi entre Pote e a nédia matrona Uma bulha ferina sobre a paga daquela radiante festa do Oriente; ela reclamava mais sete piastras de ouro; Pote, de bigode eriçado, cuspia-lhe injúrias em árabe, rudes e chocando-se como calhaus se despenham num vale. E saímos daquele lugar de deleite perseguidos pelos gritos de Fatmé, que se babava de furor, agitava os braços marcados da peste e nos amaldiçoava, e a nossos pais, e aos ossos de nossos avós, e a terra que nos gerara, e o pão que comíamos, e as sombras que nos cobrissem! Depois na rua negra dous cães seguiram-nos muito tempo, ladrando lugubremente.

Entrei no Hotel do Mediterrâneo, afogado em saudades da minha terra risonha; os gozos de que me via privado nesta lôbrega, inimiga Sião, faziam-me ansiar mais inflamadamente pelos que me daria a fácil, amorável Lisboa, quando, morta a Titi, eu herdasse a bolsa sonora de seda verde!... La não encontraria, nos corredores adormecidos, uma bota severa e bestial! lá nenhum corpo bárbaro fugiria, com lágrimas, à carícia dos meus dedos. Dourado pelo ouro da Titi, o meu amor não seria jamais ultrajado, nem a minha concupiscência jamais repelida. Ah! meu Deus! Assim eu lograsse, pela minha santidade, cativar a Titi!... E logo, abancando, escrevi à hedionda senhora esta carta terníssima:

«Querida Titi do meu coração! Cada vez me sinto com mais virtude. E atribuo-a ao agrado com que o Senhor está vendo esta minha visita ao seu santo túmulo. De dia e de noite passo o tempo a meditar a sua divina paixão e a pensar na Titi. Agora mesmo venho da Via-Dolorosa. Ai, que enternecedora que estava! E uma rua tão benta, tão benta, que até tenho escrúpulo de a pisar com os botins; e noutro dia não me contive; agachei-me, beijei-lhe as ricas pedrinhas! Esta noite passei-a quase toda a rezar à Senhora do Patrocínio, que todo o mundo aqui em Jerusalém respeita muitíssimo. Tem um altar muito lindo; ainda que a este respeito bem razão tinha a minha boa tia (como tem razão em tudo), quando dizia que lá para festas e procissões não há como os nossos portugueses. Pois esta noite, assim que ajoelhei diante da capela da Senhora, depois de seis salve-rainhas, voltei-me para a bela imagem e disse-lhe: — Ai, quem me dera saber como está a minha tia Patrocínio! — E quer a Titi acreditar? Pois olhe, a Senhora, com a sua divina boca, disse-me palavras textuais, que até, para não me esquecerem, as escrevi no punho da camisa: — A minha querida afilhada vai bem, Raposo, e espera fazer-te feliz! E isto não é milagre extraordinário, porque me contam aqui todas as famílias respeitáveis com quem vou tomar chá, que a Senhora e seu divino Filho dirigem sempre algumas palavras bonitas a quem os vem visitar. Saberá que já lhe obtive certas relíquias: uma palhinha do presépio, e uma tabuinha aplainada por São José. O meu companheiro alemão, que, como mencionei à Titi na minha carta de Alexandria, é de muita religião e muito sábio, consultou os livros que traz e afirmou-me que a tabuinha era das mesmas que, segundo está provado, São José costumava aplainar nas horas vagas. Em quanto à grande relíquia, aquela que lhe quero levar para a curar de todos os seus males e dar a salvação à sua alma e pagar-lhe assim tudo o que lhe devo, essa espero em breve obtê-la. Mas por ora não posso dizer nada... Recados aos nossos amigos, em quem penso muito e por quem tenho rezado constantemente; sobretudo ao nosso virtuoso Casimiro. E a Titi deite a sua bênção ao seu sobrinho fiel e que muito a venera e está chupadinho de saudades e deseja a sua saúde — Teodorico. — P.S. Ai, Titi, que asco que me fez hoje a casa de Pilatos! Até lhe escarrei! E cá disse à Santa Verônica que a Titi tinha muita devoção com ela. Pareceu-me que a senhora santa ficou muito regalada... E o que eu digo aqui a todos estes eclesiásticos e aos patriarcas: é necessário conhecer-se a Titi, para se saber o que é virtude!»