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Antes de me despir, fui escutar, colada a orelha ao tabique de ramagens. A inglesa dormia serena, insensíveclass="underline" eu resmunguei, brandindo para lá o punho fechado:

— Besta!

Depois abri o guarda-roupa, tirei o dileto embrulho da camisinha da Mary; depus nele o meu beijo repenicado e grato.

Cedo, ao alvorar do outro dia, partimos para o devoto Jordão.

Fastidiosa, modorrenta, foi a nossa marcha entre as colinas de Judá! Elas sucedem-se, lívidas, redondas como crânios, ressequidas, escalvadas por um vento de maldição; só a espaços nalguma encosta rasteja um tojo escasso, que na vibração inexorável da luz parece de longe um bolar de velhice e de abandono. O chão faísca, cor de cal. O silêncio radiante entristece como o que cai da abóbada de um jazigo. No fulgor duro do céu rondava em torno a nós, lento e negro, um abutre... Ao declinar do sol erguemos as nossas tendas nas ruínas de Jericó.

Saboroso foi então descansar sobre macios tapetes, bebendo devagar limonada, na doçura da tarde. A frescura de um riacho alegre, que chalrava junto ao nosso acampamento por entre arbustos silvestres, misturava-se ao aroma da flor que eles davam, amarela como a da giesta; adiante verdejava um prado de ervas altas, avivado pela brancura de vaidosos, lânguidos lírios; junto da água passeavam aos pares pensativas cegonhas. Do lado de Judá erguia-se o Monte da Quarentena, torvo, fusco na sua tristeza de eterna penitência; e para as bandas de Moabe os meus olhos perdiam-se na velha, sagrada terra de Canaã, areal cinzento e desolado que se estende, como a alva mortalha de uma raça esquecida, até às solidões do Mar Morto.

Fomos, ao alvorecer, com os alforjes fornidos, fazer essa votiva romaria. Era então em dezembro; esse inverno da Síria ia transparentemente doce; e trotando pela areia fina ao meu lado, o erudito Topsius contava-me como esta planície de Canaã fora outrora toda coberta de rumorosas cidades, de brancos caminhos entre vinhedos, e de águas de rega refrescando os muros das eiras; as mulheres, toucadas de anêmonas, pisavam a uva cantando; o perfume dos jardins era mais grato ao céu que o incenso; e as caravanas que entravam no vale pelo lado de Ségor achavam aqui a abundância do rico Egito — e diziam que era este em verdade o vergel do Senhor.

— Depois — acrescentava Topsius sorrindo com infinito sarcasmo — um dia o Altíssimo aborreceu-se e arrasou tudo!.

— Mas por quê? Por quê?

— Birra; mau humor; ferocidade...

Os cavalos relincharam sentindo a vizinhança das águas malditas; e bem depressa elas apareceram, estendidas até às montanhas de Moabe, imóveis, mudas, faiscando solitárias sob o céu solitário. Oh tristeza incomparável!. E compreende-se que pesa ainda sobre elas a cólera do Senhor, quando se considera que ali jazem, há tantos séculos, sem uma recreável vila como Cascais; sem claras barracas de lona alinhadas à sua beira; sem regatas, sem pescas; sem que senhoras, meigas e de galochas, lhe recolham poeticamente as conchinhas na areia; sem que as alegrem, à hora das estrelas, as rabecas de uma assembléia toda festiva e com gás — ali mortas, enterradas entre duas serras como entre as cantarias de um túmulo.

— Além era a cidadela de Maqueros — disse gravemente o erudito Topsius, alçado sobre os estribos, alongando o guarda-sol para a costa azulada do mar. — Ali viveu um dos meus Herodes, Antipas, o tetrarca da Galiléia, filho de Herodes, o Grande; ali, D. Raposo, foi degolado o Batista.

E seguindo a passo para o Jordão (enquanto o alegre Pote nos fazia cigarros do bom tabaco de Alepo), Topsius contou-me essa lamentável história. Maqueros, a mais altiva fortaleza da Ásia, erguia-se sobre pavorosos rochedos de basalto. As suas muralhas tinham cento e cinqüenta côvados de altura; as águias mal podiam chegar até onde subiam as suas torres. Por fora era toda negra e soturna; mas dentro resplandecia de marfins, de jaspes, de alabastros; e nos profundos tetos de cedro os largos broquéis de ouro suspensos faziam como as constelações de um céu de verão. No centro da montanha, num subterrâneo, viviam as duzentas éguas de Herodes, as mais belas da terra, brancas como o leite, com crinas negras como o ébano, alimentadas a bolos de mel, e tão ligeiras que podiam correr, sem lhes macular a pureza, por sobre um prado de açucenas. Depois, mais fundo ainda, num cárcere, jazia Iocanã — que a Igreja chama o Batista.

— Mas então, esclarecido amigo, como foi essa desgraça?

— Pois foi assim, D. Raposo... O meu Herodes conhecera em Roma, Herodíade, sua sobrinha, esposa de seu irmão Filipe, que vivia na Itália, indolente e esquecido da Judéia, gozando o luxo latino. Era esplendidamente, sombriamente bela, Herodíade!... Antipas Herodes arrebata-a numa galera para a Síria; repudia sua mulher, uma moabita nobre, filha do Rei Aretas, que governava o deserto e as caravanas; e fecha-se incestuosamente com Herodíade nessa cidadela de Maqueros. Cólera em toda a devota Judéia, contra este ultraje à lei do Senhor! E então Antipas Herodes, arteiro, manda buscar o Batista, que pregava em vão do Jordão...

— Mas para quê, Topsius?

— Pois para isto, D. Raposo... A ver se o rude profeta acariciado, amimado, amolecido pelo louvor e pelo bom vinho de Siquém, aprovava estes negros amores, e pela persuasão da sua voz, dominante em Judéia e Galiléia, os tomava aos olhos dos fiéis, brancos como a neve do Carmelo. Mas, desgraçadamente, D. Raposo, o Batista não tinha originalidade. Santo respeitável, sim; mas nenhuma originalidade... O Batista imitava em tudo servilmente o grande profeta Elias; vivia num buraco, como Elias; cobria-se de peles de feras, como Elias; nutria-se de gafanhotos, como Elias; repetia as imprecações clássicas de Elias; e como Elias clamara contra o incesto de Acabe, logo o Batista trovejou contra o incesto de Herodíade. Por imitação, D. Raposo!

— E emudeceram-no com a masmorra!

— Qual! Rugiu, pior, mais terrivelmente! E Herodíade escondia a cabeça no manto para não ouvir esse clamor de maldição, saído do fundo da montanha.

Eu balbuciei, com uma lágrima a amolentar-me a pálpebra:

— E Herodes mandou então degolar o nosso bom São João!

— Não! Antipas Herodes era um frouxo, um tíbio... Muito lúbrico, D. Raposo, infinitamente lúbrico, D. Raposo! Mas que indecisão!... Além disso, como todos os galileus, tinha uma secreta fraqueza, uma irremediável simpatia por profetas. E depois arreceava a vingança de Elias, o patrono, o amigo de Iocanã... Porque Elias não morreu, D. Raposo. Habita o céu vivo, em carne, ainda coberto de farrapos, implacável, vociferador e medonho...

— Safa! — murmurei, arrepiado.

— Pois aí está... Iocanã ia vivendo, ia rugindo. Mas sinuoso e sutil é o ódio da mulher, D. Raposo. Chega, no mês de Esquema, o dia dos anos de Herodes. Há um vasto festim em Maqueros, a que assistia Vitélio, então viajando na Síria. D. Raposo lembra-se do crasso Vitélio que depois foi senhor do mundo... Pois à hora em que pelo cerimonial das províncias tributárias, se bebia à saúde de César e de Roma, entra subitamente na sala, ao som dos tamborins e dançando à maneira de Babilônia, uma virgem maravilhosa. Era Salomé, a filha de Herodíade e de seu marido Filipe, que ela educara secretamente em Cesaréia, num bosque, junto do Templo de Hércules. Salomé dançou, nua e deslumbrante. Antipas Herodes, inflamado, estonteado de desejo, promete dar tudo o que ela pedisse pelo beijo dos seus lábios... Ela toma um prato de ouro, e tendo olhado a mãe, pede a cabeça do Batista. Antipas, aterrado, oferece-lhe a cidade de Tiberíade, tesouros, as cem aldeias de Genesaré... Ela sorriu, olhou a mãe; e outra vez, incerta e gaguejando, pediu a cabeça de Iocanã... Então todos os convivas, saduceus, escribas, homens ricos da Decápola, mesmo Vitélio, e os romanos, gritaram alegremente: «Tu prometeste, tetrarca, tu juraste, tetrarca!» Momentos depois, D. Raposo, um negro de Iduméia entrou, trazendo numa das mãos um alfanje, na outra, presa pelos cabelos, a cabeça do profeta. E assim acabou São João, por quem se canta e se queimam fogueiras numa doce noite de junho...