Escutando, embevecidos e a passo, estas cousas tão antigas, avistamos ao longe, na areia fulva, uma sebe de verdura triste e da cor do bronze. Pote gritou: «O Jordão! O Jordão!» E arrebatadamente galopamos para o rio da Escritura.
O festivo Pote conhecia, à beira da corrente batismal, um sitio deleitosíssimo para uma sesta cristã; e aí passamos as horas quentes, recostados num tapete, lânguidos, e bebendo cerveja, depois de bem esfriada nas águas do rio santo. Ele faz ali um claro, suave remanso, a repousar da lenta, abrasada jornada que traz, através do deserto, desde o Lago de Galiléia; e antes de mergulhar para sempre no amargor do Mar Morto — ali preguiça, espraiado sobre a areia fina; canta baixo e cheio de transparência, rolando os seixos lustrosos do seu leito; e dorme nos sítios mais frescos, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos... Por sobre nós rumorejavam as folhas dos altos choupos da Pérsia; entre as ervas balançavam-se flores desconhecidas, das que toucavam outrora as tranças das virgens de Canaã em manhãs de vindima; e na escuridão fofa das ramagens, onde já as não vinha assustar a voz terrível de Jeová, gorjeavam pacificamente as toutinegras. Defronte, elevavam-se, azuis e sem mancha, como feitas de um só bloco de pedra preciosa, as montanhas do Moabe. O céu branco, mudo, recolhido, parecia descansar deliciosamente do duro tumulto que o agitou quando ali vivia, entre preces e mortandades, o sombrio povo de Deus; e onde constantemente batiam as asas dos serafins, e flutuavam as roupagens dos profetas arrebatados pelo Altíssimo, era calmante ver agora passar apenas uma revoada de pombos bravos, voando para os pomares de Engada.
Obedecendo à recomendação da Titi, despi-me, e banhei-me nas águas do Batista. Ao princípio, enleado de emoção beata, pisei a areia reverentemente como se fosse o tapete de um altar-mor; e de braços cruzados, nu, com a corrente lenta a bater-me os joelhos, pensei em São Joãozinho, sussurrei um padre-nosso. Depois ri, aproveitei aquela bucólica banheira entre árvores; Pote atirou-me a minha esponja; e ensaboei-me nas águas sagradas, trauteando o fado da Adélia.
Ao refrescar, quando montávamos a cavalo, uma tribo de beduínos, descendo das colinas de Galgalá, trouxe os seus rebanhos de camelos a beber ao Jordão; as crias brancas e felpudas corriam, balando; os pastores, de lança alta, soltando gritos de batalha, galopavam, num amplo esvoaçar de albornozes; e era como se ressurgisse em todo o vale, no esplendor da tarde, uma pastoral da idade bíblica, quando Agar era moça! Teso na sela, com as rédeas bem colhidas, eu senti um curto arrepio de heroísmo; ambicionava uma espada, uma lei, um deus por quem combater... Lentamente alargara-se pela planície sacra um silêncio enlevado. E o mais alto cerro de Moabe cobriu-se de um fulgor raro, cor-de-rosa e cor de ouro, como se nele de novo, fugitivamente, ao passar, se refletisse a face do Senhor! Topsius alçou a mão sapiente:
— Aquele cimo iluminado. D. Raposo, é o Moriá, onde morreu Moisés!
Estremeci. E penetrado pelas emanações divinas dessas águas, desses montes, sentia-me forte — e igual aos homens fortes do Êxodo. Pareceu-me ser um deles, familiar de Jeová, e tendo chegado do negro Egito com as minhas sandálias na mão.. Esse aliviado suspiro que trazia a brisa vinha das tribos de Israel, emergindo enfim do deserto! Pelas encostas além, seguida de uma escolta de anjos, a Arca dourada descia balançada sobre os ombros dos levitas vestidos de linho e cantando. Outra vez, nas secas areias, reverdecia a terra da promissão, Jericó branquejava entre as searas; e através dos palmares cerrados já ressoavam, em marcha, os clarins de Josué!
Não me contive, arranquei o capacete, soltei por sobre Canaã este urro piedoso:
— Viva Nosso Senhor Jesus Cristo! Viva toda a corte do céu!
Cedo, ao outro dia, domingo, o incansável Topsius partiu, bem enlapisado e bem enguarda-solado, a estudar as ruínas de Jericó, essa velha cidade das palmeiras que Herodes cobrira de termas, de templos, de jardins, de estátuas, e onde passaram os seus tortuosos amores com Cleópatra... E eu, à porta da tenda, escarranchado num caixote, fiquei a tomar o meu café, olhando os pacíficos aspectos do nosso acampamento. O cozinheiro depenava frangos; o beduíno triste arcava à beira da água o seu pacato alfanje; o nosso lindo arrieiro esquecia a ração às éguas para seguir no céu de um brilho de safira, a branca passagem das cegonhas voando aos pares para Samaria.
Depois pus o capacete, fui vadiar na doçura da manhã, de mãos nos bolsos, cantarolando um fado meigo. E ia pensando na Adélia e no Senhor Adelino... Enroscados na alcova, beijando-se furiosamente, estavam-me talvez chamando carola, enquanto eu passeava ali, nos retiros da Escritura! Àquela hora a Titi, de mantelete preto, com o seu ripanço, saía para a missa de Santana; os criados do Montanha, esguedelhados, assobiando, escovavam o pano dos bilhares; e o Doutor Margaride, à janela, na Praça da Figueira, pondo os óculos, abria o Dia rio de Notícias. Ó minha doce Lisboa!... Mas ainda mais perto, para além do deserto de Gaza, no verde Egito, a minha Maricoquinhas nesse instante estava enchendo o vaso do balcão com magnólias e rosas; o seu gato dormia no veludo da cadeira; ela suspirava pelo «seu portuguesinho valente...» Suspirei também; mais triste nos lábios se me fez o fado triste.
E de repente, olhando, achei-me, como perdido, num sítio de grande solidão e de grande melancolia. Era longe do regato e dos aromáticos arbustos de flor amarela; já não via as nossas tendas brancas; e diante de mim arredondava-se um ermo árido, lívido, de areia, fechado todo por penedos lisos, direitos como os muros de um poço, tão lúgubres que a luz loura da quente manhã de Oriente desmaiava ali, mortalmente, desbotada e magoada. Eu lembrava-me de gravuras, assim desoladas, onde um eremita de longas barbas medita um in-fólio junto de uma caveira. Mas nenhum solitário aniquilava ali a carne em heróica penitência. Somente, ao meio do fero recinto, isolada, orgulhosa, com um ar de raridade e de relíquia, como se as penedias se tivessem amontoado para lhe arranjarem um resguardo de sacrário — erguia-se uma árvore tão repelente, que logo me fez morrer nos lábios o resto do fado triste...
Era um tronco grosso, curto, atochado e sem nós de raízes, semelhante a uma enorme moca bruscamente cravada na areia; a casca corredia tinha o lustre oleoso de uma pele negra; e da sua cabeça entumecida, de um tom de tição apagado, rompiam, como longas pernas de aranha, oito galhos que contei, pretos, moles, lanugentos, viscosos, e armados de espinhos... Depois de olhar em silêncio para aquele monstro, tirei devagar o meu capacete e murmurei:
— Para que viva!
E que me encontrava certamente diante de uma árvore ilustre! Fora um galho igual (o nono talvez) que, arranjado outrora em forma de coroa por um centurião romano da guarnição de Jerusalém, ornara sarcasticamente, no dia do suplício, a cabeça de um carpinteiro de Galiléia, condenado... Sim, condenado por andar, entre quietas aldeias e nos santos pátios do templo, dizendo-se filho de Davi e dizendo-se filho de Deus, a pregar contra a velha religião, contra as velhas instituições, contra a velha ordem, contra as velhas formas! E eis que esse galho, por ter tocado os cabelos incultos do rebelde, torna-se divino, sobe aos altares, e do alto enfeitado dos andores faz prostrar no lajedo, à sua passagem, as multidões enternecidas...