No colégio dos Isidoros, às terças e sábados, o sebento Padre Soares dizia esfuracando os dentes — «que havia, meninos, lá num sitio da Judéia...» Era ali! «...uma árvore que segundo dizem os autores é mesmo de arrepiar...» Era aquela! Eu tinha, ante meus frívolos olhos de bacharel, a sacratíssima árvore de espinhos!
E logo uma idéia sulcou-me o espírito, com um brilho de visitação celeste... Levar à Titi um desses galhos, o mais penugento, o mais espinhoso, como sendo a relíquia fecunda em milagres, a que ela poderia consagrar seus ardores de devota e confiadamente pedir as mercês celestiais! «Se entendes que mereço alguma cousa pelo que tenho feito por ti, traze-me então desses santos lugares uma santa relíquia...» Assim dissera a senhora D. Patrocínio das Neves na véspera da minha jornada piedosa, entronada nos seus damascos vermelhos, diante da magistratura e da igreja, deixando escapar uma baga de pranto sob seus óculos austeros. Que lhe podia eu oferecer mais sagrado, mais enternecedor, mais eficaz, que um ramo da árvore de espinhos, colhido no vale do Jordão, numa clara, rosada manhã de missa?
Mas de repente assaltou-me uma áspera inquietação... E se realmente uma virtude transcendente circulasse nas fibras daquele tronco? E se a Titi começasse a melhorar do fígado, a reverdecer, mal eu instalasse no seu oratório, entre lumes e flores, um desses galhos eriçados de espinhos? ó misérrimo logro! Era eu pois que lhe levava nesciamente o princípio milagroso da saúde, e a tornava rija, indestrutível, ininterrável, com os contos de G. Godinho firmes na mão avara! Eu! Eu que só começaria a viver, quando ela começasse a morrer!
Rondando então em torno à árvore de espinhos, interroguei-a, sombrio e rouco: «Anda, monstro, dize! És tu uma relíquia divina com poderes sobrenaturais? Ou és apenas um arbusto grutesco com um nome latino nas classificações de Lineu? Fala! Tens tu, como aquele cuja cabeça coroaste por escárnio, o dom de sarar? Vê lá... Se te levo comigo para um lindo oratório português, livrando-te do tormento da solidão e das melancolias da obscuridade, e dando-te lá os regalos de um altar, o incenso vivo das rosas, a chama louvadora das velas, o respeito das mãos postas, todas as carícias da oração, não é para que tu, prolongando indulgentemente uma existência estorvadora, me prives da rápida herança e dos gozos a que a minha carne moça tem direito! Vê lá! Se, por teres atravessado o Evangelho, te embebeste de idéias pueris de caridade e misericórdia, vais com tenção de curar a Titi, então fica-te aí, entre essas penedias, fustigado pelo pó do deserto, recebendo o excremento das aves de rapina, enfastiado no silêncio eterno!... Mas se prometes permanecer surdo às preces da Titi, comportar-te como um pobre galho seco e sem influência, e não interromperes a apetecida decomposição dos seus tecidos, então vais ter em Lisboa o macio agasalho de uma capela afofada de damascos, o calor dos beijos devotos, todas as satisfações de um ídolo, e eu hei de cercar-te de tanta adoração que não hás de invejar o deus que os teus espinhos feriram... Fala, monstro.»
O monstro não falou. Mas logo senti perpassar-me na alma, aquietadoramente, com uma consolante fresquidão de brisa de estio, o pressentimento de que breve a Titi ia morrer e apodrecer na sua cova. A árvore de espinhos mandava, pela comunicação esparsa da natureza, da sua seiva ao meu sangue, aquele palpite suave da morte da senhora D. Patrocínio, como uma promessa suficiente de que, transportado para o oratório, nenhum dos seus galhos impediria que o fígado dessa hedionda senhora inchasse e se desfizesse... E isto foi, entre nós, nesse ermo, como um pacto taciturno, profundo e mortal.
Mas era esta realmente a árvore de espinhos? A rapidez da sua condescendência, fazia-me suspeitar a excelência da sua divindade. Resolvi consultar o sólido, sapientíssimo Topsius.
Corri à fonte de Eliseu, onde ele rebuscava pedras, lascas, lixos, restos da orgulhosa cidade das palmeiras. Avistei logo o luminoso historiógrafo acocorado junto a uma poça de água, com os óculos sôfregos, escarafunchando um pedaço de pilastra negra, meio enterrada no lodo. Ao lado um burro, esquecido da erva tenra, contemplava filosoficamente e com melancolia o afã, a paixão daquele sábio, de rastos no chão, à procura das termas de Herodes.
Contei a Topsius o meu achado, a minha incerteza... Ele ergueu-se logo, serviçal, zeloso, presto às lides do saber.
— Um arbusto de espinhos? — murmurava, estancando o suor. Há de ser o nabka... Banalíssimo em toda a Síria! Hasselquist, o botânico, pretende que daí se fez a coroa de espinhos... Tem umas folhinhas verdes, muito tocantes, em forma de coração, como as da hera... Ah, não tem? Perfeitamente, então é o lycium spinosum. Foi o que serviu, segundo a tradição latina, para a coroa da injúria... Que, quanto a mim, a tradição é fútil; e Hasselquist ignaro, infinitamente ignaro... Mas eu vou já aclarar isso, D. Raposo. Aclarar irrefutavelmente e para sempre!
Abalamos. No ermo, ante a árvore medonha, Topsius, alçando catedraticamente o bico, recolheu um momento aos depósitos interiores do seu saber, e depois declarou que eu não podia levar à minha tia devotíssima nada mais precioso. E a sua demonstração foi faiscante. Todos os instrumentos da crucificação (disse ele, floreando o guarda-sol), os pregos, a esponja, a cana verde, um momento divinizados como materiais da divina tragédia, reentraram pouco a pouco, pelas urgências da civilização, nos usos grosseiros da vida... Assim, o prego não ficou per eternum na ociosidade dos altares, memorando as chagas sacratíssimas; a humanidade, católica e comerciante, foi gradualmente levada a utilizar o prego como uma valiosa ferragem; e tendo trespassado as mãos do Messias, ele hoje segura, laborioso e modesto, as tampas de caixões impuríssimos... Os mais reverentes irmãos do Senhor dos Passos, empregam a cana para pescar; ela entra na folgante composição do foguete; e o Estado mesmo (tão escrupuloso em matéria religiosa), assim a usa em noites alegres de nova Constituição, ou em festivos delírios pelas bodas de príncipes... A esponja, outrora embebida no vinagre de sarcasmo e oferecida numa lança, é hoje aproveitada nesses irreligiosos cerimoniais da limpeza, que a Igreja sempre reprovou com ódio... Até a cruz, a forma suprema, tem perdido entre os homens a sua divina significação. A cristandade, depois de a ter usado como lábaro, usa-a como enfeite. A cruz é broche, a cruz é berloque; pende nos colares, tilinta nas pulseiras; é gravada em sinetes de lacre, é incrustada em botões de punho; e a cruz realmente neste soberbo século pertence mais à ourivesaria do que pertence à religião...
— Mas a coroa de espinhos, D. Raposo, essa não tornou a servir para mais nada!
Sim, para mais nada! A Igreja recebeu-a das mãos de um procônsul romano, e ela ficou isoladamente e para toda a eternidade na igreja, comemorando o grande ultraje. Em todo este vário universo, ela só encontra um lugar congênere na penumbra das capelas; o seu único préstimo é persuadir à contrição. Nenhum joalheiro jamais a imitou em ouro, cravejada de rubis, para ornar um penteado louro; ela é só instrumento de martírio; e com salpicos de sangue, sobre os caracóis frisados das imagens, inspira infinitamente as lágrimas... O mais astuto industrial, depois de a retorcer pensativamente nas mãos, restituí-la-ia aos altares como cousa inútil na vida, no comércio, na civilização; ela é só atributo da Paixão, recurso de tristes, enternecedora de fracos. Só ela, entre os acessórios da escritura, provoca sinceramente a oração. Quem, por mais adorabundo, se prostraria, a borbulhar de padre-nossos, diante de uma esponja caída numa tina, ou de uma cana à beira de um regato?... Mas para a coroa de espinhos, erguem-se sempre as mãos crentes; e a sensação da sua desumanidade passa ainda na melancolia dos misereres!