Que maior maravilha podia eu levar à Titi?...
— Sim, Topsius, meu catita... Os teus dizeres são de ouro puro... Mas a outra, a verdadeira, a que serviu teria sido tirada daqui, deste tronco? Hem, amiguinho?
O erudito Topsius desdobrou lentamente o seu lenço de quadrados; e declarou (contra a fútil tradição latina e contra o ignaríssimo Hasselquist) que a coroa de espinhos fora arranjada de uma silva, fina e flexível, que abunda nos vales de Jerusalém, com que se acende o lume, com que se eriçam as sebes, e que dá uma florzinha roxa, triste e sem cheiro... Eu murmurei, sucumbido:
— Que pena! A Titi fazia tanto gosto que fosse daqui, Topsius! A Titi é tão rica!...
Então este sagaz filósofo compreendeu que há razões de família como há razões de Estado, e foi sublime. Estendeu a mão por cima da árvore, cobrindo-a assim largamente com a garantia da sua ciência, e disse estas palavras memoráveis:
— D. Raposo, nós temos sido bons amigos... Pode pois afiançar à senhora sua tia, da parte de um homem que a Alemanha escuta em questões de crítica arqueológica, que o galho que lhe levar daqui, arranjado em coroa, foi...
— Foi? — berrei ansioso.
— Foi o mesmo que ensangüentou a fronte do Rabi Jeschoua Natzarieh, a quem os latinos chamam Jesus de Nazaré, e outros também chamam o Cristo!...
Falara o alto saber germânico! Puxei o meu navalhão sevilhano, decepei um dos galhos. E enquanto Topsius voltava a procurar pelas ervas úmidas a cidadela de Cipron e outras pedras de Herodes, eu recolhi às tendas, em triunfo, com a minha preciosidade. O prazenteiro Pote, sentado num selim, estava moendo café.
— Soberbo galho! — gritou ele. — Quer-se arranjadinho em coroa... Fica de uma devoção!
E logo, com a sua rara destreza de mãos, o jucundo homem entrelaçou o galho rude em forma de coroa santa. E tão parecida! Tão tocante!...
— Só lhe faltam as pinguinhas de sangue! — murmurava eu, enternecido. — Jesus! O que a Titi se vai babar!
Mas como levaríamos para Jerusalém, através dos cerros de Judá, aqueles incômodos espinhos — que, apenas armados na sua forma passional, pareciam já ávidos de rasgar carne inocente? Para o alegre Pote não havia dificuldades; tirou do fundo do seu provido alforje uma fofa nuvem de algodão em rama; envolveu nela delicadamente a coroa do agravo, como uma jóia frágil; depois, com uma folha de papel pardo e um nastro escarlate, fez um embrulho redondo, sólido, ligeiro e nítido... E eu, sorrindo, enrolando o cigarro, pensava nesse outro embrulho de rendas e laços de seda, cheirando a violeta e a amor, que ficara em Jerusalém, esperando por mim e pelo favor dos meus beijos.
— Pote, Pote! — gritei, radiante. — Nem tu sabes que grossa moeda me vai render esse galhinho, dentro desse pacotinho!
Apenas Topsius voltou da sacra fonte de Eliseu — eu ofereci, para celebrar o encontro providencial da grande relíquia, uma das garrafas de Champagne, que Pote trazia nos alforjes, encarapuçadas de ouro. Topsius bebeu «à ciência!» Eu bebi «à religião!» E largamente a espuma de Moed et Chandon regou a terra de Canaã.
À noite, para maior festividade, acendemos uma fogueira; e as mulheres árabes de Jericó vieram dançar diante das nossas tendas. Recolhemos tarde, quando por sobre Moabe, para os lados de Maqueros, a lua aparecia, fina e recurva, como esse alfanje de ouro que decepou a cabeça ardente de Iocanã.
O embrulho da coroa de espinhos estava à beira do meu catre. O lume apagara-se; o nosso acampamento dormia no infinito silêncio do Vale da Escritura... Tranqüilo, regalado, adormeci também.
Capítulo 3
Havia certamente duas horas que assim dormia, denso e estirado no catre, quando me pareceu que uma claridade trêmula, como a de uma tocha fumegante, penetrava na tenda, e através dela uma voz me chamava, lamentosa e dolente:
— Teodorico, Teodorico, ergue-te, e parte para Jerusalém!
Arrojei a manta, assustado; e vi o doutíssimo Topsius, que, à luz mortal de uma vela, bruxuleando sobre a mesa onde jaziam as garrafas de Champagne, afivelava no pé rapidamente uma velha espora de ferro. Era ele que me despertava, açodado, fervoroso:
— A pé, Teodorico, a pé! As éguas estão seladas! Amanhã é Páscoa! Ao alvorecer devemos chegar às portas de Jerusalém!
Arredando os cabelos, considerei com pasmo o sisudo, ponderado doutor:
— Oh Topsius! Pois nós partimos assim, bruscamente, sem os nossos alforjes, e deixando as tendas adormecidas, como quem foge espavorido?
O erudito homem alçou os seus óculos de ouro que resplandeciam com uma desusada, irresistível intelectualidade. Uma capa branca, que eu nunca lhe vira, envolvia-lhe a douta magreza em pregas graves e puras de toga latina; e lento, esguio, abrindo os braços, disse, com lábios que pareciam clássicos e de mármore:
— D. Raposo! Esta aurora que vai nascer, e em pouco tocar os cimos do Hébron, é a de 15 do mês de Nizam; e não houve em toda a história de Israel, desde que as tribos voltaram da Babilônia, nem haverá, até que Tito venha pôr o último cerco ao templo, um dia mais interessante! Eu preciso estar em Jerusalém para ver, viva e rumorejando, esta página do Evangelho! Vamos pois fazer a santa Páscoa à casa de Gamaliel, que é um amigo de Hilel, e um amigo meu, um conhecedor das letras gregas, patriota forte e membro do Sanedrim. Foi ele que disse: «para te livrares do tormento da dúvida, impõe-te uma autoridade». Portanto, a pé, D. Raposo!
Assim murmurou o meu amigo, ereto e lento. E eu, submissamente, como perante um mandamento celeste, comecei a enfiar em silêncio as minhas grossas botas de montar. Depois, apenas me agasalhei no albornoz, ele empurrou-me com impaciência para fora da tenda, sem mesmo me deixar recolher o relógio e a faca sevilhana, que todas as noites, cauteloso, eu guardava debaixo do travesseiro. A luz da vela esmorecia, fumarenta e vermelha...
Devia ser meia-noite. Dous cães ladravam ao longe, surdamente, como entre frondosos muros de quintas. O ar macio e ermo cheirava a rosas de vergel e à flor da laranjeira. O céu de Israel faiscava com desacostumado esplendor; e em cima do Monte Nebo, um belo astro mais branco, de uma refulgência divina, olhava para mim, palpitando ansiosamente, como se procurasse, cativo na sua mudez, dizer um segredo à minha alma!
As éguas esperavam, imóveis sob as longas crinas. Montei. E então, enquanto Topsius arranjava laboriosamente os loros, avistei, para os lados da fonte do Eliseu, uma forma maravilhosa que me arrepiou de terror transcendente.
Era, ao clarão diamantino das estrelas da Síria, como a branca muralha de uma cidade nova! Frontões de templos alvejavam palidamente, entre a espessura de bosques sagrados; para as colinas distantes, fugiam esbatidos os arcos ligeiros de um aqueduto. Uma chama fumegava no alto de uma torre; mais baixo, movendo-se, faiscavam pontas de lanças; um som longo de buzina morria na sombra... E abrigada junto aos bastiões, uma aldeia dormia entre palmeiras.
Topsius, na sela, pronto a marchar, embrulhara a mão nas crinas da égua.
— Aquilo, branco, além? — murmurei, sufocado.
Ele disse simplesmente:
— Jericó.
Rompeu, galopando. Não sei quanto tempo segui, emudecido, o nobre historiador dos Herodes; era por uma estrada direita, feita de lajes negras de basalto. Ah! que diferente do áspero caminho por onde tínhamos descido a Canaã, faiscante e cor de cal, através de colinas onde o tojo escasso semelhava, na irradiação da luz, um bolor de velhice e de abandono! E tudo em redor me parecia diferente também: a forma das rochas, o cheiro da terra quente, até a palpitação das estrelas... Que mudança se fizera em mim, que mudança se fizera no Universo? Por vezes uma faísca dura saltava das ferraduras das éguas. E sem descontinuar, Topsius galopava, agarrado às crinas, com as duas bandas da capa branca batendo como os dous panos de uma bandeira...