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Mas subitamente parou. Era junto de uma casa quadrada, entre árvores, toda apagada e muda, tendo no topo uma haste sobre que pousava estranhamente, como recortada numa lâmina de ferro, a figura de uma cegonha. À entrada esmorecia uma fogueira; remexi as achas; e à curta chama que ressaltou, compreendi que era uma antiga estalagem à beira de uma antiga estrada. Por baixo da cegonha, encimando a porta estreita e eriçada de pregos, brilhava em negro, numa lápide branca, a tabuleta latina — Ad Gruem Majorem; e ao lado, enchendo parte da fachada, desenrolava-se uma inscrição rudemente entalhada na pedra, que eu decifrei a custo, e em que Apolo prometia a saúde ao hóspede, e Septimano, o hospedeiro, lhe garantia risonha acolhida, o banho reparador, vinho forte da Campânia, frescos palhetes de Engada, e «todas as comodidades à maneira de Roma».

Murmurei, desconfiado:

— À maneira de Roma!

Que estranhos caminhos ia eu então trilhando? Que outros homens, dessemelhantes de mim, no falar e no traje, bebiam ali, sobre a proteção de outros deuses, o vinho em ânforas do tempo de Horácio?...

Mas de novo Topsius marchou, esguio e vago, na noite. Agora findara a estrada de basalto sonoro; e subíamos a passo um brusco caminho, cavado entre rochas, onde grossos pedregulhos ressoavam, rolavam sobre as patas das éguas, como no leito de uma torrente que um lento agosto secou. O erudito doutor, sacudido na sela, praguejava roucamente contra o Sanedrim, contra a hirta lei judaica, oposta indobravelmente a toda a obra culta que quer fazer o procônsul... Sempre o fariseu via com rancor o aqueduto romano que lhe trazia a água, a estrada romana que o levava às cidades, a romana que lhe curava as pústulas...

— Maldito seja o fariseu!

Sonolento, rememorando velhas imprecações do Evangelho, eu rosnava, encolhido no meu albornoz:

— Fariseu, sepulcro caiado... Maldito seja!

Era a hora calada em que os lobos dos montes vão beber. Cerrei os olhos; as estrelas desmaiavam.

Breves faz o Senhor as noites macias do mês de Nizam, quando se come em Jerusalém o anho branco de Páscoa; e bem cedo o céu se vestiu de alvo do lado do país de Moabe.

Despertei. Já os gados balavam nos cerros. O ar fresco cheirava a rosmaninho.

E então avistei, errando por cima dos penedos sobranceiros ao caminho, um homem estranho, bravio, coberto com uma pele de carneiro, que me recordou Elias e todas as cóleras da Escritura; o peito, as pernas pareciam de granito vermelho; por entre a grenha e a barba, rudes, emaranhadas, fazendo-lhe como uma juba feroz, os olhos refulgiam-lhe desvairadamente... Descobriu-nos; e logo, estendendo os braços como quem arremessa pedras, despediu sobre nós todas as maldições do Senhor! Chamou-nos «pagãos», chamou-nos «cães»; gritava: «malditas sejam as vossas mães, secos sejam os peitos que vos criaram»! Cruéis e cheios de presságios caíam os seus brados do alto das rochas; e, retardado pelos passos lentos da égua, Topsius encolhia-se na capa, como sob uma saraiva inclemente. Até que me enfureci; voltei-me na anca da cavalgadura, chamei-lhe bêbedo, atirei-lhe obscenidades; e via no entanto, sob a chama selvagem dos seus olhos, a boca clamorosa e negra torcer-se-lhe, babar-se de furor devoto...

Mas, desembocando da ravina, encontramos, larga e lajeada, a estrada romana que vai a Siquém; e trotando por ela, sentimos o alívio de penetrar enfim numa região culta, piedosa, humana e legal. A água abundava; sobre as colinas erguiam-se fortalezas novas; pedras sagradas delimitavam os campos. Nas eiras brancas, os bois enfeitados de anêmonas pisavam o trigo da colheita de Páscoa; e em vergéis, onde a figueira já tinha enfolhado, o servo na sua torre caiada, cantando com uma vara na mão, afugentava os pombos bravos. Por vezes, avistávamos um homem, de pé, junto da sua vinha, ou à beira dos canais de rega, direito, com a ponta do manto atirada por cima da cabeça, e os olhos baixos, dizendo a santa oração do Esquema. Um oleiro, que espicaçava o seu burro, carregado de cântaros de barro amarelo, gritou-nos: «Benditas sejam as vossas mães! Boa vos seja a Páscoa!» E um leproso, que descansava à sombra, nos olivedos, perguntou-nos, gemendo e mostrando as chagas, qual era em Jerusalém o Rabi que curava, e aonde se apanhava a raiz do baraz.

Já nos aproximávamos de Betânia. Para dar de beber às éguas, paramos numa linda fonte que um cedro assombreava. E o douto Topsius, arranjando um loro, admirava-se de não termos encontrado a caravana, que vem de Galiléia celebrar a Páscoa a Jerusalém — quando soou, adiante, na estrada, um rumor lento de armas em marcha... E eu vi, assombrado, aparecerem soldados romanos, desses que tantas vezes amaldiçoara em estampas da Paixão!

Barbudos, tostados pelo sol da Síria, marchavam solidamente, em cadência, com um passo bovino, fazendo ressoar sobre as lajes as sandálias ferradas; todos traziam às costas os escudos envoltos em sacos de lona; e cada um erguia ao ombro uma alta forquilha, de onde pendiam trouxas encordeladas, pratos de bronze, ferramentas e cachos de tâmaras. Algumas filas, descobertas, seguravam o capacete como um balde; outras, nas mãos cabeludas, balançavam um dardo curto. O decurião, gordo e louro, seguido de uma gazela familiar, enfeitada com corais, dormitava, ao passo miúdo da égua, embrulhado num manto escarlate. E atrás, ao lado das mulas carregadas de sacos de trigo e molhos de lenha, os arrieiros cantavam ao som de uma flauta de barro, tocada por um negro quase nu, que linha no peito, em traços vermelhos, o número da legião.

Eu recuara para o escuro do cedro. Mas Topsius, logo, como um germano servil, desmontara, ajoelhando quase no pó, ante as armas de Roma; e não se conteve; berrou, agitando os braços e a capa:

— Longa vida a Caio Tibério, três vezes cônsul, ilírico, panônico, germânico, imperador, pacificador e augusto!...

Alguns legionários riram, crassamente. E passaram, cerrados, com um rumor de ferro — enquanto um pegureiro, ao longe, arrebanhando as cabras aos brados, fugia para o cimo dos cerros.

De novo galopamos. A estrada de basalto findou; e penetramos entre arvoredos, num aroma de pomares, através de abundância e frescura.

Oh, que diferentes se mostravam estes caminhos, estas colinas, que eu vira dias antes, em torno à Cidade Santa, dessecadas por um vento de abstração, e brancas, da cor das ossadas... Agora tudo era verde, regado, murmuroso, e com sombras. A mesma luz perdera o tom magoado, a cor dorida, com que eu sempre a vira, cobrindo Jerusalém; as folhas dos ramos de abril desabrochavam num azul, moço, tenro, cheio de esperança como elas. E a cada instante se me iam os olhos longamente nesses vergéis da Escritura, que são feitos da oliveira, da figueira e da vinha, e onde crescem silvestres, e mais esplêndidos que o Rei Salomão, os lírios vermelhos dos campos!

Enlevado e cantarolando, eu trotava ao comprido de uma sebe toda entrelaçada de rosas. Mas Topsius deteve-me; mostrou-me no alto de um outeiro, sobre um fundo sombrio de ciprestes e cedros, uma casa abrindo, para o lado do Oriente e da luz, o seu pórtico branco. Pertencia, disse ele, a um romano, parente de Valério Grato, antigo Legado Imperial da Síria; e tudo ali parecia penetrado de paz amável e de graça latina. Um tapete viçoso, de relva bem lisa, estendia-se em declive até uma álea de alfazema, tendo ao meio, sobre o verde, desenhadas com linhas de flores escarlates, as iniciais de Valério Grato; em redor, entre canteiros de rosas, de açucenas, orladas de mirto, resplandeciam nobres vasos de mármore coríntico, onde se enrolavam folhas de acanto; um servo, de capuz cinzento, talhava um teixo em forma de urna, ao lado de um buxo alto já talhado sabiamente em feitio da lira; aves domésticas picavam o chão, coberto de areia escarlate, numa rua de plátanos onde os braços de hera faziam, de tronco a tronco, festões como os que ornam um templo; a rama dos loureiros velava de sombras a nudez das estátuas. E sob um caramanchão de vinha, ao rumor da água lenta cantando numa bacia de bronze, um velho de toga, sereno, risonho, ditoso, lia junto a uma imagem de Esculápio um longo rolo de papiro, enquanto uma rapariga, com uma flecha de ouro nas tranças, toda vestida de linho alvo, fazia uma grinalda com as flores que lhe enchiam o regaço... Ao passo dos nossos cavalos, ela ergueu os olhos claros. Topsius gritou: Oh, salve, pulquerríma! Eu gritei — Viva la gracia! Os melros cantavam nas romãzeiras em flor.