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Era a Vicência, a criada da tia Patrocínio. O Senhor Matias subiu os degraus conversando com ela, e levando-me ternamente pela mão. Numa sala forrada de papel escuro, encontramos uma senhora muito alta, muito seca, vestida de preto, com um grilhão de ouro no peito; um lenço roxo, amarrado no queixo, caía-lhe num bioco lúgubre sobre a testa; e no fundo dessa sombra, negrejavam dous óculos defumados. Por trás dela, na parede, uma imagem de Nossa Senhora das Dores olhava para mim, com o peito trespassado de espadas.

— Esta é a Titi — disse-me o Senhor Matias. — E necessário gostar muito da Titi... E necessário dizer sempre que sim à Titi!

Lentamente, a custo, ela baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, de uma frialdade de pedra; e logo a Titi recuou, enojada.

— Credo, Vicência! Que horror! Acho que lhe puseram azeite no cabelo!

Assustado, com o beicinho já a tremer, ergui os olhos para ela, murmurei:

— Sim, Titi.

Então o Senhor Matias gabou o meu gênio, o meu propósito na liteira, a limpeza com que eu comia a minha sopa à mesa das estalagens.

— Está bem — rosnou a Titi secamente. — Era o que faltava, portar-se mal, sabendo o que eu faço por ele... Vá, Vicência, leve-o lá para dentro... lave-lhe essa ramela; veja se ele sabe fazer o sinal da cruz...

O Senhor Matias deu-me dous beijos repenicados. A Vicência levou-me para a cozinha.

À noite vestiram-me o meu fato de veludilho; e a Vicência, séria, de avental lavado, trouxe-me pela mão a uma sala em que pendiam cortinas de damasco escarlate, e os pés das mesas eram dourados como as colunas de um altar. A Titi estava sentada no meio do canapé, vestida de seda preta, toucada de rendas pretas, com os dedos resplandecentes de anéis. Ao lado, em cadeiras também douradas, conversavam dous eclesiásticos. Um, risonho e nédio, de cabelinho encaracolado e já branco, abriu os braços para mim, paternalmente. O outro, moreno e triste, rosnou só «boas noites». E da mesa, onde folheava um grande livro de estampas, um homenzinho, de cara rapada e colarinhos enormes, cumprimentou, atarantado, deixando escorregar a luneta do nariz.

Cada um deles vagarosamente me deu um beijo. O padre triste perguntou-me o meu nome, que eu pronunciava Tedrico. O outro, amorável, mostrando os dentes frescos, aconselhou-me que separasse as sílabas e dissesse Te-o-do-ri-co. Depois acharam-me parecido com a mamã, nos olhos. A Titi suspirou, deu louvores a Nosso Senhor de que eu não tinha nada do Raposo. E o sujeito de grandes colarinhos fechou o livro, fechou a luneta, e timidamente quis saber se eu trazia saudades de Viana. Eu murmurei, atordoado:

— Sim, Titi.

Então o padre mais idoso e nédio chegou-me para os joelhos, recomendou-me que fosse temente a Deus, quietinho em casa, sempre obediente à Titi...

— O Teodorico não tem ninguém senão a Titi... E necessário dizer sempre que sim à Titi...

Eu repeti, encolhido:

— Sim, Titi.

A Titi, severamente, mandou-me tirar o dedo da boca. Depois disse-me que voltasse para a cozinha, para a Vicência, sempre a seguir pelo corredor...

— E quando passar pelo oratório, onde está a luz e a cortina verde, ajoelhe, faça o seu sinalzinho da cruz...

Não fiz o sinal da cruz. Mas entreabri a cortina; e o oratório da Titi deslumbrou-me, prodigiosamente. Era todo revestido de seda roxa, com painéis enternecedores em caixilhos floridos, contando os trabalhos do Senhor; as rendas da toalha do altar roçavam o chão tapetado; os santos de marfim e de madeira, com auréolas lustrosas, viviam num bosque de violetas e de camélias vermelhas. A luz das velas de cera fazia brilhar duas salvas nobres de prata, encostadas à parede, em repouso, como broquéis de santidade; e erguido na sua cruz de pau preto, sob um dossel, Nosso Senhor Jesus Cristo era todo de ouro, e reluzia.

Cheguei-me devagar até junto da almofada de veludo verde, pousada diante do altar, cavada pelos piedosos joelhos da Titi. Ergui para Jesus crucificado os meus lindos olhos negros. E fiquei pensando que no céu os anjos, os santos, Nossa Senhora e o Pai de todos, deviam ser assim, de ouro, cravejados talvez de pedras; o seu brilho formava a luz do dia; e as estrelas eram os pontos mais vivos do metal precioso, transparecendo através dos véus negros, em que os embrulhava à noite, para dormirem, o carinho beato dos homens.

Depois do chá, a Vicência foi-me deitar numa alcovinha pegada ao seu quarto. Fez-me ajoelhar em camisa, juntou-me as mãos, e ergueu-me a face para o céu. E ditou os Padre-Nossos que me cumpria rezar pela saúde da Titi, pelo repouso da mamã, e por alma de um comendador que fora muito bom, muito santo e muito rico o que se chamava Godinho.

Apenas completei nove anos, a Titi mandou-me fazer camisas, um fato de pano preto, e colocou-me, como interno, no colégio dos Isidoros, então em Santa Isabel.

Logo nas primeiras semanas liguei-me ternamente com um rapaz, Crispim, mais crescido que eu, filho da firma Teles, Crispim & Cia. donos da fábrica de fiação à Pampulha. O Crispim ajudava à missa aos domingos; e, de joelhos, com os seus cabelos compridos e louros, lembrava a suavidade de um anjo. As vezes agarrava-me no corredor e marcava-me a face, que eu tinha feminina e macia, com beijos devoradores; à noite, na sala de estudo, à mesa onde folheávamos os sonolentos dicionários, passava-me bilhetinhos a lápis chamando-me seu idolatrado e prometendo-me caixinhas de penas de aço...

A quinta-feira era o desagradável dia de lavarmos os pés. E três vezes por semana o sebento Padre Soares vinha, de palito na boca, interrogar-nos em doutrina e contar-nos a vida do Senhor.

— Ora, depois pegaram, e levaram-no de rastos a casa de Caifás... Olá, o da pontinha do banco, quem era Caifás?... Emende! Emende adiante!... Também não! Irra, cabeçudos! Era um judeu e dos piores... Ora diz que, lá num sítio muito feio da Judéia, há uma árvore toda de espinhos, que é mesmo de arrepiar...

A sineta do recreio tocava; todos, a um tempo e de estalo, fechávamos a cartilha.

O tristonho pátio de recreio, areado com saibro, cheirava mal por causa da vizinhança das latrinas; e o regalo para os mais crescidos era tirar uma fumaça do cigarro, às escondidas, numa sala térrea onde aos domingos o mestre de dança, o velho Cavinetti, frisado e de sapatinhos decotados, nos ensinava mazurcas.

Cada mês a Vicência, de capote e lenço, me vinha buscar depois da missa para ir passar um domingo com a Titi. Isidoro Júnior, antes de eu sair, examinava-me sempre os ouvidos e as unhas; muitas vezes, mesmo na bacia dele, dava-me uma ensaboada furiosa, chamando-me baixo sebento. Depois trazia-me até à porta, fazia-me uma carícia, tratava-me de seu querido amiguinho, e mandava pela Vicência os seus respeitos à senhora D. Patrocínio das Neves.

Nós morávamos no Campo de Santana. Ao descer o Chiado, eu parava numa loja de estampas, diante do lânguido de uma mulher loura, com peitos nus, recostada numa pele de tigre, e sustentando na ponta dos dedos, mais finos que os do Crispim, um pesado fio de pérolas. A claridade daquela nudez fazia-me pensar na inglesa do senhor barão; e esse aroma, que tanto me perturbara no corredor da estalagem, respirava-o outra vez, finamente espalhado, na rua feita de sol, pelas sedas das senhoras que subiam para a missa do Loreto, espartilhadas e graves.

A Titi, em casa, estendia-me a mão a beijar; e toda a manhã eu ficava folheando volumes do Panorama Universal, na saleta dela, onde havia um sofá de riscadinho, um armário rico de pau preto, e litografias coloridas, com ternas passagens da vida puríssima do seu favorito santo, o patriarca São José. A Titi, de lenço roxo carregado para a testa, sentada à janela por dentro dos vidros, com os pés embrulhados numa manta, examinava solicitamente um grande caderno de contas.