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Os seus olhos brilhantes umedeceram. Três vezes, curvado para o chão, com os braços abertos, repetiu o nome de Iocanã, como chamando alguém dentre os mortos. Depois, com duas lágrimas rolando pela barba, murmurou muito baixo, numa confidência que o enchia de terror e de fé:

— Fui eu que subi a Maqueros a buscar a cabeça do Batista! E quando descia o caminho, com ela embrulhada no meu manto, ainda a outra, Herodíade, estirada por sobre a muralha como a fêmea lasciva do tigre, rugia e me gritava injúrias!... Três dias e três noites segui pelas estradas de Galiléia, levando a cabeça do justo pendurada pelos cabelos... Às vezes, detrás de um rochedo, um anjo surgia todo coberto de negro, abria as asas e punha-se a caminhar ao meu lado...

De novo a cabeça lhe pendeu, os seus duros joelhos ressoaram nas lajes; e ficou prostrado, orando ansiosamente, com os braços estendidos em cruz.

Então Gamaliel adiantou-se para o sábio Topsius; e, mais direito que uma coluna do templo, com os cotovelos colados à cinta, as mãos magras espalmadas para fora:

— Nós temos uma lei; a nossa lei é clara. Ela é a palavra do Senhor; e o Senhor disse: «Eu sou Jeová, o eterno, o primeiro e o último; o que não transmite a outros nem o seu nome, nem a sua glória; antes de mim não houve deus algum, não existe deus algum ao meu lado, não haverá deus algum depois de mim...» Esta é a voz do Senhor. E o Senhor disse ainda: «Se pois entre vós aparecer um profeta, um visionário que faça milagres e queira introduzir outro deus e chame os simples ao culto desse deus, esse profeta e visionário morrerá!» Esta é a lei, esta é a voz do Senhor. Ora, o Rabi de Nazaré proclamou-se deus em Galiléia, nas sinagogas, nas ruas de Jerusalém, nos pátios santos do templo... O Rabi deve morrer.

Mas o famoso Manassés, cujo lânguido olhar entenebrecia como um céu onde vai trovejar, interpôs-se entre o doutor da Lei e o historiador dos Herodes. E nobremente repeliu a letra cruel da doutrina:

Não, não! Que importa que a lâmpada de um sepulcro diga que é o sol? Que importa que um homem abra os braços e grite que é um deus? As nossas leis são suaves; por tão pouco não se vai buscar o carrasco ao seu covil a Garebe...

Eu, caridoso, ia louvar Manassés. Mas já ele bradava, com violência e fervor.

— Todavia, esse Rabi de Galiléia deve decerto morrer, porque é um mau cidadão e um mau judeu! Não o ouvimos nós aconselhar que se pague o tributo a César? O Rabi estende a mão a Roma; o romano não é o seu inimigo. Há três anos que prega, e ninguém jamais lhe ouviu proclamar a necessidade santa de expulsar o estrangeiro. Nós esperamos um messias que traga uma espada e liberte Israel, e este, néscio e verboso, declara que traz só o pão da verdade! Quando há um pretor romano em Jerusalém; quando são lanças romanas que velam às portas do nosso Deus, a que vem esse visionário falar do pão do céu e do vinho da verdade? A única verdade útil é que não deve haver romanos em Jerusalém!...

Osânias, inquieto, olhou a janela cheia de luz, por onde as ameaças de Manassés se evolavam, vibrantes e livres. Gamaliel sorria friamente. E o discípulo ardente de Judas de Gamala clamava, arrebatado na sua paixão:

— Oh! Em verdade vos digo, embalar as almas na esperança do reino do céu, é fazer-lhes esquecer o dever forte para com o reino da terra, para esta terra de Israel que está em ferros, e chora e não quer ser consolada! O Rabi é traidor à Pátria! O Rabi deve morrer!

Trêmulo, agarrara a espada; e o seu olhar alargava-se, com uma fulguração de revolta, como chamando avidamente os combates e a glória dos suplícios.

Então Osânias ergueu-se apoiado a um bastão que rematava numa pinha de ouro. Um penoso cuidado parecia agora anuviar a sua velhice leviana. E começou a dizer, de manso e tristemente, como quem através do entusiasmo e da doutrina aponta o mandato iniludível da necessidade:

— Decerto, decerto, pouco importa que um visionário se diga messias e filho de Deus; ameace destruir a lei e destruir o templo. O Templo e a Lei podem bem sorrir e perdoar, certos da sua eternidade... Mas, oh Manassés, as nossas leis são suaves; e não creio que se deva ir acordar o carrasco a Garebe, porque um Rabi de Galiléia, que se lembra dos filhos de Judas de Gamala pregados na cruz, aconselha prudência e malícia nas relações com o romano! Ó Manassés, robustas são as tuas mãos; mas podes tu, com elas, desviar a corrente do Jordão, da terra de Canaã para a terra da Tracaunítida? Não. Nem podes também impedir que as legiões de César, que cobriram as cidades da Grécia, venham cobrir o país de Judá! Sábio e forte era Judas Macabeu, e fez amizade com Roma... Porque Roma é sobre a terra como um grande vento da natureza; quando ele vem, o insensato oferece-lhe o peito e é derrubado; mas o homem prudente recolhe à sua morgada e está quieto. Indomável era a Galácia; Filipe e Perseu tinham exércitos na planície; Antíoco, o Grande comandava cento e vinte elefantes e carros de guerra inumeráveis... Roma passou; deles que resta? Escravos, pagando tributos...

Curvara-se, pesadamente, como um boi sob o jugo. Depois, fixando sobre nós os olhos miúdos que dardejavam um brilho inexorável e frio, prosseguiu, sempre de manso e suticlass="underline"

— Mas em verdade vos digo, que esse Rabi de Galiléia deve morrer! Porque é o dever do homem que tem bens na terra e searas, apagar depressa com a sandália, sobre as lajes da eira, a fagulha que ameaça inflamar-lhe a meda... Com o romano em Jerusalém, todo aquele que venha e se proclame Messias, como o de Galiléia, é nocivo e perigoso para Israel. O romano não compreende o reino do céu que ele promete; mas vê que essas prédicas, essas exaltações divinas, agitam sombriamente o povo dentro dos pórticos do templo... E então diz: «na verdade este templo, com o seu ouro, as suas multidões, e tanto zelo, é um perigo para a autoridade de César na Judéia...» E logo, lentamente, anula a força do templo diminuindo a riqueza, os privilégios do seu sacerdócio. Já para nossa humilhação, as vestes pontificais são guardadas no erário da Torre Antônia; amanhã será o candelabro de ouro! Já o pretor usou, para nos empobrecer, o dinheiro do Corbã! Amanhã os dízimos da colheita, o dos gados, o dinheiro da oferenda, o óbolo das trombetas, os tributos rituais, todos os haveres do sacerdócio, até as viandas dos sacrifícios, nada será nosso, tudo será do romano! E só nos ficará o bordão para irmos mendigar nas estradas de Samaria, à espera dos mercadores ricos da Decápola... Em verdade vos digo, se quisermos conservar as e os tesouros, que são nossos pela antiga lei, e que fazem o esplendor de Israel, devemos mostrar ao romano, que nos vigia, um templo quieto, policiado, submisso, contente, sem fervores e sem Messias!... O Rabi deve morrer!

Assim diante de mim falou Osânias, filho de Beotos, e membro de Sanedrim.

Então o magro historiador dos Herodes, cruzando com reverência as mãos sobre o peito, saudou três vezes aqueles homens facundos. Gade, imóvel, orava. No azul da janela uma abelha cor de ouro zumbia, em tomo da flor de madressilva. E Topsius dizia com pompa:

— Homens que me haveis acolhido! A verdade abunda nos vossos espíritos, como a uva abunda nas videiras! Vós sois três torres que guardais Israel entre as nações; uma defende a unidade da religião; outra mantém o entusiasmo da pátria; e a terceira, que és tu, venerando filho de Beotos, cauto e ondeante como a serpente que amava Salomão, protege uma cousa mais preciosa, que é a ordem!... Vós sois três torres; e contra cada uma o Rabi de Galiléia ergue o braço e lança a primeira pedrada! Mas vós guardais Israel e o seu Deus e os seus bens, e não vos deveis deixar derrocar!... Em verdade, agora o reconheço, Jesus e o judaísmo nunca poderiam viver juntos.

E Gamaliel, com o gesto de quem quebra uma vara frágil, disse, mostrando os dentes brancos:

— Por isso o crucificamos!

Foi como uma faca acerada que, lampejando e salvando, se viesse cravar no meu peito! Arrebatei, sufocado, a manga do douto historiador: